A ANORMALIDADE NECESSÁRIA DE MARIA
ALCINA
“De normal batam os outros
É
preciso ter coragem
Venha
a nós o vosso reino
Quem
não pode se sacode
Eu
aceito só metade
E
a família como vai?”
(Arnaldo
Antunes
– “De Normal”, canção que deu o nome para o álbum De Normal Bastam os Outros,
lançado por Maria
Alcina no final de 2013)
Ainda me emociono bastante quando vejo determinados artistas do mundo da
música que conseguem realizar seu ofício com extrema paixão. O público deixa de
ser uma simples horda de pessoas que pagaram por um ingresso que lhe garante
uma hora e meia ou duas de simples entretenimento. O palco deixa de ser um mero
local de trabalho para se transformar em um santuário musical que reflete
nossos desejos e sensações mais genuínas. Todos os presentes se tornam
cúmplices de uma estrela que deseja fazer daquela noite um evento memorável. A
isto damos o nome de arte.
Maria Alcina no SESC Belenzinho - SP, 18/02/2016 Foto: Nilton Serra |
Maria Alcina é uma tradução e tanto para o que foi descrito acima. Tive a
oportunidade singular de presenciar seu retorno definitivo ao mainstream com o CD e DVD De
Normal Bastam os Outros, lançados entre 2013 e 2015. Quem pensa que os
seus shows são um mero desfile de irreverência, confete e serpentina está
plenamente enganado. Por trás de toda a purpurina e maquiagem pesada, há uma
cantora de voz potente é poderosíssima, dona de um timbre vocal único e que
consegue imprimir tratamentos distintos a canções da dupla João Bosco / Aldir
Blanc como o antológico samba “Kid Cavaquinho” e o chocante blues “O Chefão”. Seu estilo inconfundível, nem um pouco
sintonizado com os arroubos das Divas da MPB, é o diferencial de Alcina em um
país de cantoras tão talentosas e bem-dotadas de talento.
De acordo com o produtor musical Thiago Marques Luiz, Maria Alcina é uma
“artista singular que o Brasil entende e desentende, lembra d esquece, mas
jamais deixa de aplaudir”. Descaradamente influenciada por Carmen Miranda, sua
música faz uma conexão do presente com o passado, sem nenhuma presença de
nostalgia. Sua arte é pautada em viés carnavalizante, cuja marca registrada é a
sua voz bem-humorada e a sua personalidade esfuziante que tem cativado os
brasileiros desde a sua consagração com “Fio Maravilha”, do Festival Internacional
da Canção de 1972, ou de álbuns mais recentes como Confete & Serpentina (2009).
O que mais me impressionou a respeito da presença de palco de Maria
Alcina foi justamente a sua brejeira simplicidade – típico de qualquer bela
mineira de Cataguases – perante os músicos que a acompanhavam em cena, em
relação ao público e até com as funcionárias da comedoria do SESC Belenzinho (o
local do show), que ela fez questão de convidar ao palco para dançar junto dela
ao som de “Prenda o Tadeu”, para delírio de todos os presentes. Além disso, o
repertório do CD e DVD De Normal Bastam
os Outros – composto por nomes de peso como Arnaldo Antunes, Zeca Baleiro,
Karina Buhr e Anastácia – consegue dialogar com canções já clássicas do
repertório de Alcina como “Fio Maravilha”, “Doida, Bonita e Gostosa” e
“Bacurinha”. Não se trata apenas de uma grande cantora comemorando 40 anos de
carreira musical, e sim o retorno de uma grande artista ao spotlight depois de algum tempo longe de seu público.
Karina Buhr & Maria Alcina no Theatro Net Rio - RJ, 10/06/2014 Foto: Mauro Ferreira |
Injustiçada pela censura e pelo ostracismo das décadas de 1980 e 1990,
Maria Alcina conseguiu se manter viva enquanto artista graças aos programas de
auditório e de sua vontade incessante de querer cantar onde houvesse trabalho. Graças
à Internet, às redes sociais (a cantora de “Kid Cavaquinho” pode ser facilmente
encontrada no Facebook e no Instagram), à memória musical coletiva
de seus fãs e dos esforços hercúleos do produtor musical Thiago Marques Luiz, o
devido reconhecido foi concedido a um dos nomes mais inquietos da música brasileira.
Alcina é uma cantora que olha para a frente sem deixar de reverenciar o
que foi produzido de melhor no passado. Resgatar o repertório de Adoniran
Barbosa, Paulinho da Viola em tempos nos quais muitos pouco conhecem o básico
do cancioneiro popular brasileiro é mais do que um ato de reverência: é um
serviço de utilidade pública! Em uma era na qual o “politicamente correto” e a
“falsa inocência” na música brasileira, a anormalidade do canto de Maria Alcina
é fundamental para o Brasil de hoje.
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