19 de julho de 2016

TROVA # 76

AS VERDADES DE JANIS JOPLIN
(o que o documentário Janis: Little Girl Blue, de Amy J. Berg, nos revela sobre a pérola negra do Texas)


Ah, ah, don’t you forget me Lord
Well I don’t think I’m any very special
Kind of person down here, I know better,
But I don’t think you’re gonna find anybody,
Not anybody who could say that they tried like I tried,
The worst thing you can say all about me
Is that I’m never satisfied…
(“Work Me, Lord”, de Nick Gravenites, eternizada por Janis Joplin em I Got Dem ‘Ol Kozmic Blues Again, Mama! em 1969)


Para Lilian Severino, que sobreviveu alegremente a quase duas horas de documentário

         O bom das férias de julho para mortais como eu é poder ter a liberdade de reencontrar velhos e queridos amigos sem pensar na tarefa insana de conciliar as obrigações profissionais com o lazer de que muito precisamos. Ah, e assistir aos filmes que estávamos loucos para ver na tela grande do cinema, felicidade extrema deste incorrigível fã de música... e de Janis Joplin!
         Não me contive de tanta alegria e excitação quando meus amigos concordaram em ir ao cinema para assistir o premiado documentário Janis: Little Girl Blue, de Amy J. Berg. Fruto de décadas de pesquisas e entrevistas, a película percorreu festivais renomados como os de Toronto, Veneza e Rio de Janeiro antes de entrar em cartaz pelo circuito nacional brasileiro. Em uma época repleta de documentários musicais de extrema qualidade, artistas como os Rolling Stones, John Lennon, Bob Dylan e Amy Winehouse receberam tributos fabulosos da sétima arte. Janis Joplin merecia algo que estivesse à altura de sua grandiosidade artística.


*

         O principal trunfo de Amy J. Berg reside no fato de que ela conseguiu retratar com a exatidão a essência da pérola negra do Texas: Janis Joplin não era simplesmente uma garota que falava alto, bebia, fumava, transava e se drogava desenfreadamente. A filha mais velha do casal Seth e Dorothy Joplin foi alguém que enfrentou milhares de dificuldades de relacionamento com o mundo por ser inteligente, contestadora e fora dos padrões de beleza tiranos do Meio Oeste dos EUA. Little Girl Blue foi o elemento que apimentou o Verão do Amor que varreu San Francisco e o resto do planeta de jeito. Além disto, ela viveu a liberdade sexual em seu pleno esplendor – a entrevista de Jae Whitaker, ex-namorada de Janis no início dos anos 1960 é um dos pontos altos do filme; Peggy Caserta, outro affair de Janis, aparece apenas com sua voz em “off” e nos deu uma bela explicação a respeito do temperamento melancólico da estrela.

Janis ouvindo um segredo de Peggy Caserta nos bastidores de Woodstock

         Janis não era uma mulher envolvida pela ambiciosa vontade de ser rica e famosa. Pelo contrário: sua música era uma expressão livre de sua dor e do seu desejo de amar e de ser amada por todos. Tudo o que ela queria era fazer com que as pessoas que iam aos seus shows se divertissem tanto quanto ela se doava a partir do momento em que o microfone estava em suas mãos para que o verbo fosse rasgado através de gritos, ganidos, sussurros, miados, guitarras em fúria e metais em brasa. Miss Joplin não falava necessariamente de amor a partir de uma perspectiva romântica: Janis falava de tesão e solidão como ninguém falou. Algo nada comum inclusive para mulheres dos anos 1960, o que lhe rendeu um altíssimo preço por sempre buscar sua liberdade e integridade artística.


A infante Janis Lyn Joplin


         O filme de Amy J. Berg mostra a rápida e sensacional escalada de Janis Joplin como artista popular: de uma mera cantora de bares e pés-sujos (incapacitada em se tornar uma estrela de Folk por ter influências musicais de enorme peso como Odetta e Bessie Smith), à tímida vocalista do Big Brother & The Holding Co. e, posteriormente, à uma das maiores estrelas de Rock de todos os tempos. A mítica aparição no Monterey Pop Festival (com direito à boca aberta de Cass Elliot, do The Mamas & The Papas, que estava no gargarejo da plateia) e a fama estrondosamente repentina deram à filha mais ilustre de Port Arthur uma popularidade tão grande que literalmente extrapolou os limites do próprio Big Brother – um grupo formado por músicos amadores e autodidatas por excelência. Cheap Thrills (1968), com suas distorções, dissonâncias e desafinações, foi um álbum muito bem recebido pela crítica e pelo público. A estreia solo de Janis, I Got Dem ‘Ol Kozmic Blues Again, Mama! (1969) foi extrema e duramente criticado pelos jornalistas da época. Miss Joplin, por ser inexperiente e por não ter condições de liderar uma banda, foi injustamente comparada pelo fato de querer soar como cantoras do porte de Aretha Franklin e Tina Turner – afinal, uma branca que soasse como negra ainda era um crime artístico inafiançável nos States dos libertários anos 1960.



Janis à frente do Big Brother & The Holding Co.


Janis à frente da Kozmic Blues Band

         A Kozmic Blues Band ainda precisava de uma série de ajustes que estavam fora do alcance de uma jovem cantora que não tinha a qualificação de uma Band Leader, tampouco conseguia controlar a sua voz de trovão com a precisão necessária – Woodstock, por exemplo, apesar de ter sido um evento importante e memorável, não trouxe Janis em sua melhor forma artística. Apesar das críticas ferozes e injustas, I Got Dem ‘Ol Kozmic Blues Again, Mama!, estreia solo de Janis Joplin, é um dos documentos mais belos e intensos das agruras sentimentais do ser humano e um dos itens essenciais e prediletos de minha coleção de discos.



         A década de 1960 não acabaria bem para Janis, tal qual nos mostrara Amy J. Berg em seu filme. O vício crescente em heroína e álcool foi a reação de Little Girl Blue às críticas violentas que a imprensa norte-americana (tão cruel quanto seus ex-colegas de colégio e faculdade, que a taxavam de “feia”). Sua capacidade de trabalho estava cada vez mais comprometida pela ilusão da fama e as desilusões amorosas frequentes. A pérola negra do Texas precisava de um refúgio longe dos EUA para que pudesse, enfim, se ver livre das drogas. O local escolhido para a rehab de Miss Joplin foi o Brasil – com direito a estadias no Rio Janeiro e Salvador, viagens pela Floresta Amazônica, alguns barracos em público, um pouco de samba e a um novo amor surgido na Praia de Ipanema, David Niehaus.

Janis e David Niehaus (dir.) curtindo o verão de 1970 no Brasil

         Ao retornar aos EUA, as pressões e a necessidade de bisar o sucesso de Cheap Thrills fizeram com que Little Girl Blue voltasse a consumir heroína em doses industriais. O relacionamento com Niehaus não sobreviveu ao vício de sua namorada famosa – ele a abandonou e voltou a viajar pelo mundo, mas prometeu retomar contato se Janis largasse a heroína. Em decisão conjunta com seu empresário, Albert Grossman, Miss Joplin decidiu desfazer a Kozmic Blues Band e recomeçar do zero. O ex-produtor do The Doors, Paul Rothchild, foi convocado para produzir o sucessor de I Got Dem ‘Ol Kozmic Blues Again, Mama! e convocar os músicos que formariam a Full Tilt Boogie Band, última banda que acompanhou Janis Joplin. Ao oferecer a orientação técnica de que a ex-vocalista do Big Brother & The Holding Co. tanto necessitava, ela passou a cantar de um jeito que jamais cantou antes – sua voz estava mais leve, mais controlada, praticamente limpa da heroína mas não menos intensa.

Janis durante a sessão de fotos de Pearl


Janis ao lado de Paul Rothchild, produtor de Pearl

       Janis Joplin, por ter sofrido tanto com a agressividade de seus pares no passado e por ter uma necessidade incontrolável de ser amada, não sabia lidar com a solidão. Estar sozinha lhe deixava vulnerável a ponto de duvidar de sua autoestima e dar abertura para que os fantasmas que tanto lhe assombravam voltassem para lhe infernizar. Sua última turnê, o lendário Festival Express, reuniu Janis com seus indefectíveis boás no cabaelo ao lado de grandes nomes do Blues e do Rock como Buddy Guy, The Band e o Grateful Dead entre os EUA e o Canadá durante 28 de junho e 4 de julho de 1970. Paul Rothchild relatou que sua pupila odiava os intervalos de gravação do disco porque ela sabia que teria de voltar sozinha para o seu quarto de hotel de Los Angeles enquanto seus companheiros de trabalho sempre teriam alguém que os acompanhassem assim que o expediente se encerrasse. Little Girl Blue, solitária e desesperada, foi procurar em sua última dose de heroína a companhia que David Niehaus (ou talvez Peggy Caserta) não poderia lhe dar.


O encontro, como sabermos, foi fatal e abalou os rumos da vida, da carreira de Janis Joplin e da música a partir de então: uma das maiores estrelas do Rock foi morta por uma overdose aos 27 anos de idade e no auge de sua forma artística. A amante apaixonada que, infelizmente, não leu o telegrama enviado por Niehaus a tempo de dar o rumo necessário para que sua vida, enfim, adquirisse o sentido que buscava. Miss Joplin estava finalmente livre, pois definitivamente não tinha mais nada a perder.

Família Joplin - Seth, Dorothy, Laura, Janis e Michael Joplin 


Os emocionantes depoimentos de seus irmãos, Laura e Michael Joplin, dos ex-companheiros de banda Sam Andrew e David Getz e de John Byrne Cooke (ex-road manager de Janis) ajudam a compor o vasto quebra-cabeça das verdades de Janis Joplin. Enquanto os créditos começam a subir com a releitura avassaladora de “Little Girl Blue” (de Richard Rodgers e Lorenz Hart), somos surpreendidos pela aparição de um vídeo do início da década de 1970 que mostrava Dorothy Joplin lendo uma carta de uma fã saudosa de sua filha mais velha que dizia que Janis era sua melhor amiga, nos trouxe lágrimas de imensa tristeza: a amizade platônica suscitada pela estrela de Rock era tão intensa e verdadeira quanto as ofensas e xingamentos recebidos pela personalidade mais ilustre de Port Arthur. O brilhante documentário de Amy J. Berg consegue reconstituir o brilho, a tristeza, a intensidade (graças à voz linda de Cat Power, que interpretou as cartas escritas pela pérola negra do Texas com tanta perfeição que tínhamos a sensação de estarmos diante da filha primogênita do casal Dorothy e Seth Joplin) e a tragédia de uma das artistas mais visionárias do século XX: uma mulher diferente, intensa, à frente de seu tempo e que se transformou em um dos símbolos mais evidentes de liberdade.


P.S.: Há um fato que aparece em Janis: Little Girl Blue que chamou muito minha atenção: o encontro de Bob Dylan em ascensão com uma de suas maiores fãs, Janis Joplin. Ao dizer para seu ídolo de que um dia seria uma cantora muito famosa, Mr. Zimmermann fez pouco da texana com quem ele conversava e disse que todos teriam direito aos seus minutos de fama. Cinco anos depois, Janis gravaria “Dear Landlord”, canção de Dylan que infelizmente ficou fora de I Got Dem ‘Ol Kozmic Blues Again, Mama!...


We love you, Pearl!

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