8 de agosto de 2016

TROVA # 80

CAFEÍNA, POESIA & PENSAMENTO
(cafés, livros e viagens de Patti Smith)


Acredito no momento. Acredito nesse balão alegre, o mundo. Acredito na meia-noite e na hora do meio dia. Mas no que mais acredito? Às vezes em tudo. Às vezes em nada. É algo que flutua como a luz refletindo numa lagoa. Acredito que um dia todos vamos perder. Quando somos novos acreditamos que isso não vai acontecer, que somos diferentes. Quando era criança, achava que nunca iria crescer, que podia realizar esse desejo com a minha vontade. E depois percebi, bem recentemente, que tinha atravessado alguma divisória, inconscientemente encoberta pela verdade da minha cronologia. “Como ficamos tão velhos?”, pergunto às minhas articulações, ao meu cabelo cor de ferro. Agora já estou mais velha que meu amor, que meus amigos que já se foram. Talvez eu viva tanto que a Biblioteca Pública de Nova York seja obrigada a me ceder a bengala de Virginia Woolf. Eu cuidaria da bengala para ela, das pedras de seu bolso. Mas também seguiria vivendo, recusando entregar minha caneta”.
(Patti Smith – Linha M – São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 203)

Para Malu Zanesco
a quem eu tive a honra de apresentar a arte de Patti Smith


A inteligência e o pensamento de Patti Smith transitam pelas mais diversas formas de artísticas: os universos da música, literatura, artes plásticas lhe são bastante familiares. Foi a poesia que lhe deu régua e compasso, mas foi o Punk Rock que lhe tornou famosa graças a discos revolucionários como Horses (1975), Easter (1978), Peace and Noise (1997), Twelve (2008) e Banga (2012).


Entretanto, foi a Literatura de Patti que me pegou de jeito. Ao ler Só Garotos [Just Kids] durante o inverno de 2012, ri e chorei com as andanças de Ms. Smith pela sua Nova Jersey de origem, pela França de Rimbaud e por Nova York, onde encontrou seu melhor amigo e o primeiro amor de uma vida inteira, o artista plástico e o renomado fotógrafo Robert Mapplethorpe. Os encontros e desencontros da filha mais velha de Ian e Beverly Smith são o autorretrato mais completo da juventude de uma das artistas mais importantes que os Estados Unidos da América ofertaram ao mundo.

Patti Smith ao lado de Robert Mapplethorpe 

De humilde vendedora de uma livraria à fama como uma das musas do Punk Rock e o casamento com Fred “Sonic” Smith, Patti Smith virou sinônimo de rebeldia total para gerações. Sua música não se assemelhava ao que outras mulheres faziam na década de 1970. Sua beleza não segue nenhum tipo de padrão estético ou regras previamente estabelecidas. A intensidade de seu pensamento, por outro lado, é um tributo a todos os que lhe influenciaram ao longo dos anos – Arthur Rimbaud, Allen Ginsberg, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Albert Camus, Jim Morrison e tantos outros...

Patti Smith ao lado de Allen Ginsberg

Se a música rendeu fama e celebridade a Patti Smith, a literatura lhe deu bastante prestígio no universo das letras: Só Garotos venceu o National Book Award de 2010, além de outros prêmios literários importantes dos EUA. Diante do sucesso merecido das primeiras memórias de Patti, surgiram rumores de adaptações do livro para o Cinema e de que haveria uma sequência, na qual a madrinha do Punk Rock relataria sua vida pacata, discreta e distante dos holofotes ao lado de Fred e seus dois filhos, Jackson e Jesse.

The Smiths: Fred, Patti, Jackson e Jesse - Foto: Robert Mapplethorpe
Quando comecei a ler Linha M [M Train] em abril de 2016, pensei que estava diante da vida de Patti ao lado de Fred “Sonic” Smith. Fui sumariamente enganado pela autora de “Redondo Beach”. Ela fez de seu segundo livro de prosa – Patti Smith é autora de vários livros de poesia, dentre eles: Witt (1973), Babel (1978), The Coral Sea (1996) e Auguries of Innocence (2005) –, um verdadeiro emaranhado de pensamentos poéticos acerca de seu cotidiano. Viagens, fotos, turnês, conferências, memórias, sonhos, segredos e desejos passam pelo olhar de poeta, leitora voraz e amante incondicional da cafeína. Cada página do livro pede uma xícara generosa de café e dá uma vontade incontrolável de viajar por Nova York, Tóquio, Guiana Francesa, Tanger e Rockaway Beach só para poder desfrutar de algumas das andanças e polaroides da autora.


Tal qual um trem a seguir viagem, o pensamento errante e poético de Patti Smith transita por leituras e tributos a musas e mestres literários como Jean Genet, Harumi Murakami, Albert Camus, Sylvia Plath e Ozamu Dazai. Os textos fazem com que o livro não resultasse em um mero diário de viagens: eles são um retrato fiel da Patti à beira dos 70 anos de idade, solitária e experiente nas lições e armadilhas que a vida lhe pregou – as perdas de Fred e Todd Smith, irmão da autora, em menos de dois meses, foram devastadoras para a intérprete original de “Because the Night”.



Ao concluir a leitura de Linha M, tive a impressão de ter me despedido de uma queridíssima companheira de viagem: juntos fomos à Casa Azul onde viveu Frida Kahlo, saboreamos a adorável solidão do Café ‘Ino, sentimos as forças implacáveis da natureza representadas pelo furacão Sandy (que passou por Nova York no outono de 2012), passeamos por Tóquio e Tanger, nos encantamos pelos livros perdidos, pelas polaroides extraviadas em meio às andanças de Patti. Viagens ao pensamento. Sonhos compartilhados. Os desejos de uma artista.



Por isto e tudo o mais, recomendo a todos uma leitura de Linha M. Busque a companhia de uma generosa xícara de café e adentre o universo de Patti Smith ao som das 9 sinfonias de Beethoven (como eu fiz durante a reta final de minha leitura). O trem de Patti pode te levar até suas lembranças mais íntimas, ao amor de um casaco perdido, ao réquiem de uma cafeteria que era o recanto de sua criatividade e a outros lugares que só a criatividade de um livro bem escrito consegue te levar. Pegue o seu ingresso e faça uma boa viagem, sem deixar de observar o vão que separa o vagão da plataforma...


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