A MÁQUINA HUMANA
(A Voz &
A Máquina, um show de Elza Soares)
“Sou negra, índia. Sou
samba, jazz, blues, funk, rock ‘n’ roll, bossa, rap, soul, choro, sou punk. Sou
claro. Sou escuro. Sou o sagrado. Sou o profano. Bendita. Maldita. Sou tudo.
Sou nada. Sou Elzazaza. Elza eu sou.”
(Elza Soares)
Nunca me deixei
seduzir pelos sons (re)criados pelos DJs. Sempre achei a música das pick ups um tanto estridentes e
entediantes demais, de uma frieza absoluta. Baladas? Boates? Só aquelas que
tocam o repertório dos anos 1970/1980, mas não me venham com Trash 80’s para cima de mim! No fundo,
no frigir dos ovos, sempre tive a crença de que a máquina servia exclusivamente
para que a música se tornasse algo decorativo, impessoal, sem emoção, com gosto
de uísque com energético.
Por outro lado,
sempre há momentos nos quais somos obrigados a rever os nossos conceitos.
Quando soube que Elza Soares faria uma apresentação de seu espetáculo A Voz & A Máquina no Teatro Porto
Seguro, fiquei bem receoso. Pensei que a proposta deste show estava completamente
distante de trabalhos mais recentes como Elza
Canta e Chora Lupi e A Mulher do Fim
do Mundo, o que era a mais pura verdade. Fui para o teatro com o coração
aberto e várias expectativas, apesar da minha antiga implicância com os DJs.
Mais uma vez eu seria surpreendido por mais uma apresentação devastadora da voz do milênio.
Foto: Edson Lopes Jr. |
Acompanhada de dois
DJs – Ricardo Muralha e Bruno Queiroz – e um tecladista (Antônio Guerra), lá
estava Elza Soares, sentada como uma rainha em sua cadeira no alto de um
praticável. De início, pensei que estava dentro de uma rave que multiplicava a voz de Elzinha repetida e excessivamente. Estava
redondamente enganado. Logo de cara, constatei que as pick ups de Queiroz e Muralha estavam a serviço de uma das vozes
mais lendárias do planeta e não o contrário. As máquinas, condicionadas a
reproduzir sons de forma sistemática e fria, foram humanizadas pelo talento
inconfundível de Elza. A nega subverteu a lógica da invenção do homem branco em
prol de seu canto.
Isso é o que os
artistas revolucionários fazem: fazem da sua voz algo maquinal e tornam a
máquina humana. Este é um dos exemplos que fazem de Lady Elza Soares uma artista singular na música do Brasil e do
mundo... Verdade seja dita: com quase (ou mais de) 80 anos de idade, Elza
poderia simplesmente focar em trabalhos saudosistas, louvando seu passado
musical de grandes sucessos ou colhendo os frutos gerados por A Mulher do Fim do Mundo, um dos CDs/shows
mais extraordinários de todos os tempos. Todavia, Elzinha não está no meio
musical apenas para dar selinho, agradecer, abraçar e fazer improvisos musicais
através de sua voz inconfundível: espetáculos como A Voz & A Máquina nos mostram como ela sabe ser moderna e
inquieta.
Diz-se que a proposta
de Elza, ao montar este show, era de se aproximar de um público mais jovem. Ela
não só alcançou tamanha proeza, como também conseguiu mobilizar fãs mais velhos
para uma típica “curtição jovem”. Graças aos rapazes que a acompanham no palco,
os velhos clássicos de Vinícius de Moraes (“Corcovado”, “Canto de Ossanha” e “Chega
de Saudade), Lupicínio Rodrigues (“Esses Moços”, “Nervos de Aço”) e Jorge
Aragão (“Malandro” e “Vou Festejar”) ficaram, a princípio, irreconhecíveis, mas
sem deixar de apresentar o selo de qualidade do canto de Elza Soares. “A Carne”
(Seu Jorge, Marcelo Yuka & Wilson Capellette), canção gravada por ela em Do Cóccix Até o Pescoço, aparece em A Voz & A Máquina e é um dos pontos
altos da noite. Como nos alerta o número de abertura, “Computadores Fazem Arte”
(Fred Zero Quatro), “computadores fazem arte / artistas fazem dinheiro”. Elzinha
faz a revolução e com muita ousadia.
Apesar da evidente
fragilidade física, Elza Soares reina em cima de seu trono musical através de
seu canto forte e incansável. É uma rainha dos palcos, sem perder a humildade e
a gratidão de quem veio dos estratos menos favorecidos da sociedade brasileira.
Canta os encantos da paixão e as dores da desilusão amorosa com a propriedade
da experiência de uma vida inteira. Fala de injustiças sociais, de algumas esperanças
e conta algumas anedotas de amigos queridos – não contive minhas gargalhadas
quando ela nos contou da provável reação de Vinícius de Moraes se ele visse
suas canções interpretadas daquele jeito. É uma mulher de “nervos de aço”. Uma artista
de “opinião”. É de uma ousadia que pouquíssimos artistas possuem, pois só uma
voz tão poderosa quanto uma máquina conseguiria humanizar a fria tecnologia dos
DJs.
Espero que alguma
gravadora um dia se interesse em registrar A
Voz & A Máquina em CD e DVD. Não desejo isso apenas para que possamos
ouvir mais um trabalho inquietante de Elza Soares, mas para que as gerações que
surgirem depois da minha possam testemunhar (mesmo que pela tela da TV, do smart phone ou do YouTube) que ela é, foi e sempre
será uma das artistas mais criativas e revolucionárias de que já tivemos
notícia...
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