A ESCURIDÃO
FINAL DE LEONARD COHEN
Em memória de Leonard Cohen (1934-2016)
"Há uma rachadura em tudo.
É assim que entra a luz"
(Leonard Cohen)
"There's
a blaze of light
In every word
It doesn't
matter which you heard
The holy or
the broken Hallelujah"
(Leonard
Cohen)
Outubro de 2010. Estava em um evento organizado
pela Cambridge University Press para professores de inglês em um dos teatros
mais bacanas de São Paulo. Uma palestra sobre a pronúncia do idioma. Mais um
dos infinitos compromissos de trabalho a serem cumpridos a favor da velha e
(in)cômoda preocupação com o meu "professional development".
A apresentação de Jeff Stranks se tornou
definitivamente mais interessante quando ele tocou um trecho de um show
lendário que tinha sido gravado na Arena O2, em Londres, para explicar um caso
de elisão fonética, se não me engano. Stranks perguntou aos presentes se alguém
conhecia o artista que se apresentava. Silêncio ensurdecedor e constrangedor.
Indignação minha e desapontamento do Professor...
Morri de vergonha ao saber que a única pessoa que
tinha noção de quem era Leonard Cohen, além do palestrante, era eu. Não apenas
pela suposta ignorância de meus colegas de profissão, mas principalmente por
Cohen ter sido um dos maiores artífices da língua inglesa contemporânea. Seus
versos fizeram da canção em língua inglesa algo muitíssimo mais apurado e
sofisticado.
Foi no dia em que saí daquele evento, 15 de outubro
de 2010, em que decidi o seguinte: a obra de Leonard Cohen merece ser mais ouvida.
Inclusive por mim. De lá para cá, decidi comprar alguns de seus discos e pude
testemunhar a retomada de uma das carreiras musicais mais criativas da história
da música: três álbuns de estúdio em quatro anos - Old Ideas
(2012), Popular Problems (2014) e You Want it
Darker (2016) - em um total
de quatorze discos.
Durante este período, Leonard voltou aos olhos do
público através de extensas turnês. Não apenas porque tinha a obrigação
contratual de divulgação de novos trabalhos, mas também pelo fato de ter sido
roubado por uma ex-empresária que lhe deixara sem um tostão sequer para contar
história. As excursões para o poeta eram verdadeiros pretextos não só para
conhecer novos amigos e manter os laços com velhos conhecidos, além da doce
sensação de poder reencontrar o seu público. Leonard Cohen, com mais de 75 anos
de idade, fazia shows de mais de QUATRO horas de duração, ora tocando seu
violão, ora segurando seus belíssimos chapéus fedora em suas mãos, sempre
vestido em ternos e gravatas elegantíssimos.
A música de Leonard refletia a elegância de seu
criador: reflexões poéticas profundas sobre a vida, o sexo e o cotidiano, com
direito às musas que fizeram de seu cancioneiro algo reconhecido no mundo
inteiro. Ele é tão importante quanto Bob Dylan ou Joni Mitchell. Um potencial
ganhador de um Nobel de Literatura, principalmente por ter escrito poemas,
romances e canções belíssimas. Quem não se angustiou com o sofrimento de
"The Gypsy's Wife" (escrita para a ex-mulher, Suzanne Elrod, mãe de
seus dois filhos)? Ou quem não se encantou com "So Long, Marianne"
(canção a qual Leonard homenageava Marianne Ilhen, um de seus maiores amores)?
E quem não chorou junto com ele ao ver as imagens do belíssimo documentário Bird on a Wire,
de Tony Palmer, no qual o próprio Leonard Cohen se emocionava com a plateia de
um show em Israel que não se cansava de pedir mais um encore?
You Want it Darker, seu último disco, foi lançado um mês depois do
aniversário de 82 anos de seu criador. Um marco surpreendente para quem já
tinha vivido e trabalhado tanto; afinal, lançar um CD em meio à tanta
informação de tudo quanto é qualidade no início do século XXI depois de décadas
de estrada é de uma ousadia tremenda. Apesar deste trabalho tratar da morte em
sua essência, não imaginava que Leonard Cohen iria nos abandonar menos de um
mês após o lançamento de seu décimo-quarto disco de estúdio.
Por outro lado, em uma de suas últimas linhas
entrevistas, Leonard afirmou que já estava pronto para a morte. As canções de You Want it Darker deixam bem claro de que
se tratava de uma despedida. Não quis me atentar para este fato. E muitos dos
fãs e admiradores de Leonard Cohen, eu creio. Afinal, ele sempre se desculpava
perante o público por não estar morrendo. Ele estava vivo, em plena atividade
musical e produzindo como nunca para alguém acima da faixa etária dos 80 anos
de idade.
O criador de "So Long, Marianne" nos
deixou outra pista de seu estado precário de saúde em julho de 2016, quando uma
carta para sua ex-namorada Marianne Ilhen, já no seu leito de morte, viralizou
por toda a Internet. Disse Leonard a uma de suas musas inspiradoras:
"Bem Marianne, chegou a hora em que estamos realmente velhos e nossos corpos estão sucumbindo e eu acho que irei te seguir muito em breve. Saiba que estou tão perto atrás de você que se você estender a mão, eu acho que consegue alcançar a minha. E você sabe que eu sempre te amei por sua beleza e por sua sabedoria, mas eu não preciso dizer mais nada a respeito disso porque você sabe tudo a respeito. Agora eu só quero te desejar uma viagem muito boa. Adeus velha amiga. Amor sem fim, te vejo mais à frente."
Perder Leonard Cohen em 10 de novembro de 2016,
quatro meses depois de sua amada Marianne, é um golpe fatal, sem tamanho para a
humanidade. Não apenas pela impossibilidade de podermos assistir uma
apresentação ao vivo deste grande artista visionário, mas principalmente por
saber que não vislumbraremos as coisas a partir de sua visão de mundo
privilegiada. Principalmente em um ano no qual o mundo perdeu artistas do porte
de David Bowie, Prince e George Martin. Leonard, grande sábio e imortal
artista, estava pronto para aceitar a finitude. Nós, mortais e comuns, não
estamos. Precisamos de filósofos, poetas e demais artistas e pensadores para
entender este mundo cada vez mais cruel.
Uma parte de nossas esperanças em um mundo melhor
se vai com o corpo de Leonard Cohen com uma enorme tristeza. A outra parte?
Fica por aqui, dançando ao som de violinos, com medo e buscando um mínimo de
segurança, insistindo e dando murros em pontas de facas tentando achar a poesia
em um cotidiano medíocre e desapaixonado. Até o fim do próprio amor...
Thank you for your art,
Dear Leonard. Thank you very very much...
Leonard Cohen & Joni Mitchell |
k.d. Lang & Leonard Cohen |
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