DAVID BOWIE – ★ (2016)
David Bowie surpreendeu o mundo em 08 de janeiro de
2013 ao divulgar um novo single e um álbum que seria lançado em dois meses. The
Next Day não era apenas o retorno de Bowie depois de
quase dez anos longe dos discos e dos palcos: era a prova concreta e um dos
maiores artistas da música mundial – antes tido como aposentado devido a um
ataque cardíaco que quase o fulminou em uma apresentação da Reality Tour na
Alemanha em 2004 – finalmente retornava para onde ele nunca deveria ter saído:
o topo das paradas de sucesso.
O mais surpreendente do retorno triunfal de Bowie à
música não foi o fato dele ter sido feito de maneira misteriosa, sem
estratégias de marketing extraordinárias,
entrevistas ou apresentações ao vivo. Este comeback
indicou o fato de que ele estava extremamente produtivo e criativo: no final de
2013, The Next Day Extra, um EP com 10 sobras
de estúdio, quase todas belíssimas. Mesmo assim, várias fontes ligadas ao
criador de Ziggy Stardust apontavam que havia material para, pelo menos, mais
um disco inédito.
Antes de que o lançamento de um novo álbum de
inéditas ocorresse, os fãs do camaleão inglês ainda foram agraciados com Nothing has Changed em novembro de
2014, uma coletânea que saiu em duas versões: em CD duplo e em CD triplo, com
direito a raridades e a inédita “Sue (or In a Season of Crime)”. No Brasil,
alguns chegaram a comparar esta inédita da lavra de Bowie com “Cais”, de Milton
Nascimento e Fernando Brant, gerando uma polêmica de impacto limitado. A
exposição David Bowie Is, que contou com figurinos,
manuscritos, vídeos e outros tesouros que compõem o David Bowie Archive, estava rodando o mundo e fez com que o Museu da Imagem e do Som de São Paulo
batesse recordes de visitação, com direito a filas de mais de quatro horas para
que as pessoas pudessem visitar a lendária exposição que estreou no Victoria & Albert Museum, de
Londres.
Entre os meses finais de 2014 e os meses iniciais
de 2015, David Bowie decidiu que estava na hora de retornar ao The Magic Shop e
ao Human Worldwide Studios em New York, os mesmos locais onde gravara The
Next Day em segredo poucos anos antes. Tony Visconti,
seu velho amigo, escudeiro e parceiro de tantos projetos musicais juntos, seria
o produtor do último álbum de estúdio do camaleão inglês. Outro projeto
receberia total atenção do astro inglês: o musical Lazarus, escrito em
parceria com Enda Walsh, baseado em O Homem que Caiu
na Terra (The Man who Fell
to Earth – romance de Walter Trevis de 1963 que foi adaptado
para o cinema em 1976 e que foi estrelado pelo próprio Bowie na telona).
Diante de tantos projetos em andamento, era patente
que David Bowie tinha urgência, tinha pressa, tinha muito que dizer, visto que
não tinha muito tempo de vida pela frente: um câncer fora diagnosticado no
segundo semestre de 2014 e uma batalha secreta pela vida já estava em pleno
curso.
A prioridade de David Bowie era de que este disco
não soasse como um típico de Rock. As inspirações principais do camaleão inglês
para compor e gravar as canções de ★ foram
o jazz que ouvira em um clube nova-iorquino e o álbum To Pimp a Butterfly, de Kendrick Lamar.
Bowie decidira entrelaçar a pompa, a classe e a
circunstância jazzísticas com batidas de hip hop e poucas guitarras,
adornadas com letras que refletissem a sua maneira singular de ver o mundo. Por
isso, músicos que o acompanhavam há mais de uma década como o virtuoso
guitarrista Gerry Leonard e a carismática baixista Gail Ann Dorsey foram
substituídos por Donny McCaslin (sopros), Ben Monder (guitarras), Jason Lindner
(piano, órgão e teclados), Tim Lefebvre (baixo) e Mark Guiliana (bateria e
percussão).
A faixa-título foi disponibilizada junto com o seu
videoclipe no dia 20 de novembro de 2015, deixando todos os espectadores em
estado de choque. O curta-metragem, que contou com a direção do renomado Johan
Renck, é um misto de imagens perturbadoras de rituais satânicos, execuções,
torturas. Em meio a tudo isso, surge David Bowie ora cambaleante com olhos
vendados com dois botões substituindo seus olhos, ora dançando e zombando com a
morte, dizendo que haveria alguma espécie de vida para além do corpo
supostamente combalido:
(…)
Something happened on the day he died
Spirit rose a metre and stepped aside
Somebody else took his place, and bravely cried
(I’m a blackstar, I’m a blackstar)
Something happened on the day he died
Spirit rose a metre and stepped aside
Somebody else took his place, and bravely cried
(I’m a blackstar, I’m a blackstar)
(…)
I
can’t answer why (I’m a blackstar)
Just go with me (I’m not a filmstar)
I’m-a take you home (I’m a blackstar)
Take your passport and shoes (I’m not a popstar)
And your sedatives, boo (I’m a blackstar)
You’re a flash in the pan (I’m not a Marvel star)
I’m the Great I Am (I’m a blackstar)
Just go with me (I’m not a filmstar)
I’m-a take you home (I’m a blackstar)
Take your passport and shoes (I’m not a popstar)
And your sedatives, boo (I’m a blackstar)
You’re a flash in the pan (I’m not a Marvel star)
I’m the Great I Am (I’m a blackstar)
I’m
a blackstar, way up, on money, I’ve got game
I see right, so wide, so open-hearted pain
I want eagles in my daydreams, diamonds in my eyes
(I’m a blackstar, I’m a blackstar)”
I see right, so wide, so open-hearted pain
I want eagles in my daydreams, diamonds in my eyes
(I’m a blackstar, I’m a blackstar)”
(…)
Diante de inúmeras referências presentes no clipe
de “★”, é impossível não deixarmos de destacar a figura emblemática de Major Tom, tão
presente em outras canções famosas da obra
monumental de Bowie como “Space Oddity” e “Ashes
to Ashes”. O novo trabalho do
camaleão iria tratar de temas já conhecidos por parte daqueles que já tinham
contato com a sua música: amor, vida e morte, porém com uma intensidade e uma
profundidade jamais ditas anteriormente.
A segunda faixa de ★, “’Tis a Pity She’s a
Whore”, pegou um título emprestado de uma peça do dramaturgo inglês John Ford,
cuja obra data do século XVII. A canção tinha sido disponibilizada como um lado
B para o single de “Sue (or In a Season of Crime)”, de Nothing has Changed.
Bowie decidiu regravar versões mais rápidas e palatáveis de “‘Tis a Pity…” e
“Sue…” para o seu vigésimo-quinto álbum de estúdio, o que foi uma escolha
acertada, visto que a primeira canção ficou mais fluida e a segunda com uma
pegada mais rocker e sem o tom épico
de sua gravação original.
Por outro lado, ambas tratam de um ponto em comum –
a batalha de um homem contra um inimigo implacável: em “‘Tis a Pity…” a vadia
que bate em seu interlocutor e lhe deixa completamente sem reação ou defesa
pode ser uma metáfora da doença que iria lhe levar poucos meses depois; em
“Sue…”, a amada prestes a desaparecer a qualquer momento, por motivos escusos.
As três faixas finais de ★ nos evidenciam o estado dramático de David Bowie. “Girl
Loves Me”, quinta faixa do disco,
possui algumas supostas influências de A Clockwork Orange (Laranja Mecânica),
cuja obra sempre exerceu notável fascínio da parte do criador de Ziggy
Stardust. Os versos da canção, em sua maioria, não possuem a intenção de fazer
alguma espécie de sentido, o que permite a interpretação de poder se tratar de
uma espécie de delírio, típico daqueles que estão prestes a ultrapassar a
barreira que separa a vida da morte:
(…)
Girl loves me
Hey Cheena
Girl loves me
Girl loves me
Hey Cheena
Girl loves me
Girl loves me
Hey Cheena
Girl loves me
Girl loves me
Hey Cheena
Girl loves me
Where
the f— did Monday go?
I’m cold to this pig and pug show
Where the f— did Monday go?
I’m cold to this pig and pug show
Where the f— did Monday go?
You
viddy at the Cheena
Choodesny with the red rot
Libbilubbing litso-fitso
Devotchka watch her garbles
Spatchko at the rozz-shop
Split a ded from his deng deng
Viddy viddy at the cheena
(…)
Choodesny with the red rot
Libbilubbing litso-fitso
Devotchka watch her garbles
Spatchko at the rozz-shop
Split a ded from his deng deng
Viddy viddy at the cheena
(…)
“Dollar Days”, a faixa mais sensível do álbum, é a
canção que recebe as confissões mais tristes e sofridas de David Bowie. A
ausência de inimigos declarados em meio a uma doença implacável e incurável, o
pavor de ser esquecido pelas pessoas amadas (no caso de Mr. David Jones, a
esposa Iman e os filhos Duncan e Alexandria) são tratados sem metáforas, com
uma linguagem extremamente direta. O belíssimo solo de saxofone de Donny
McCaslin é de uma beleza e de uma sensibilidade ímpares, que casam com a
melancolia dos versos de Bowie:
Cash
girls suffer me, I’ve got no enemies
I’m walking down
It’s nothing to me
It’s nothing to see
I’m walking down
It’s nothing to me
It’s nothing to see
If
I’ll never see the English evergreens I’m running to
It’s nothing to me
It’s nothing to see
It’s nothing to me
It’s nothing to see
I’m
dying to
Push their backs against the grain
And fool them all again and again
I’m trying to
We bitches tear our magazines
Those oligarchs with foaming mouths phone
Now and then
Don’t believe for just one second I’m forgetting you
I’m trying to
I’m dying to
(…)
Push their backs against the grain
And fool them all again and again
I’m trying to
We bitches tear our magazines
Those oligarchs with foaming mouths phone
Now and then
Don’t believe for just one second I’m forgetting you
I’m trying to
I’m dying to
(…)
★ é concluído com
“I Can’t Give Everything Away”, um recado de David Bowie
para a esfera pública que sempre lhe deu tanto fama, respeito e admiração.
Diante do sofrimento constante e da morte iminente, o astro inglês deixou claro
através de sua arte a ciência de seu estado, mas não queria uma despedida
formal (daí o título: to give away,
em português, quer dizer divulgar algo
secreto) – provavelmente para não atrair o sensacionalismo da grande mídia
diante de sua tragédia particular. Eis algumas das palavras finais do disco:
Seeing
more and feeling less
Saying no but meaning yes
This is all I ever meant
That’s the message that I sent
Saying no but meaning yes
This is all I ever meant
That’s the message that I sent
I can’t give everything
I can’t give everything
Away
I can’t give everything
Away
A terceira faixa do disco e segundo single de ★, “Lazarus”, é mais
do que a canção que dá título ao musical off-broadway escrito por David
Bowie e Enda Walsh: é a chave-mestra do vigésimo-quinto álbum de estúdio do
camaleão inglês. O clipe, disponibilizado para o grande público em 7 de janeiro
de 2016 (um dia antes do aniversário de Bowie e 24 horas antes do lançamento do
álbum), também recebeu a direção de Johan Renck e apresenta uma série de
mensagens subliminares para os espectadores:
Look
up here, I’m in heaven
I’ve got scars that can’t be seen
I’ve got drama, can’t be stolen
Everybody knows me now
I’ve got scars that can’t be seen
I’ve got drama, can’t be stolen
Everybody knows me now
Look
up here, man, I’m in danger
I’ve got nothing left to lose
I’m so high, it makes my brain whirl
Dropped my cell phone down below
I’ve got nothing left to lose
I’m so high, it makes my brain whirl
Dropped my cell phone down below
Ain’t
that just like me?
(…)
(…)
A mensagem da canção é clara: as cicatrizes não são
aparentes, a dor é evidente, a voz vem de um plano que não é mais o mesmo que
habita as pessoas que vivem. Não há nada a perder, mas há muito a ser dito.
David Bowie encarnava seu último personagem: ao contrário de todas as
personagens vividas por Bowie nos anos anteriores, o Lazarus do vídeo não
possuía o distanciamento brechtiano necessário da parte de um ator para
encarnar um Ziggy Stardust, Halloween Jack ou um Thin White Duke.
Se a figura bíblica supostamente ressuscitada por
Jesus depois de quatro dias (João, 11:1-46,) seria a última persona a ser
vivida, David Robert Jones se utilizava de seu sofrimento mais íntimo e intenso
(puro Stanilaviski!) para encenar a morte que viria lhe buscar dentro em breve.
Era a sua despedida daqueles que o acompanharam atenciosamente por mais de
cinco décadas:
(…)
By the time I got to New York
I was living like a king
Then I used up all my money
I was looking for your ass
By the time I got to New York
I was living like a king
Then I used up all my money
I was looking for your ass
This
way or no way
You know I’ll be free
Just like that bluebird
Now, ain’t that just like me?
You know I’ll be free
Just like that bluebird
Now, ain’t that just like me?
Oh,
I’ll be free
Just like that bluebird
Oh, I’ll be free
Ain’t that just like me?
Just like that bluebird
Oh, I’ll be free
Ain’t that just like me?
Bowie aparece deitado na cama, cantando o seu
sofrimento com os olhos vendados e com dois botões no lugar de seus olhos. A
alusão é feita à mitologia grega do Barqueiro de Caronte: naquela época, era
comum colocarem duas moedas nas vendas dos mortos como forma de pagamento do
barqueiro que levaria a alma dos falecidos para Hades.
O clipe mostra mais do que uma pessoa à beira de
morte a partir de simbolismos nada óbvios, ele mostra o canto do cisne de um
dos artistas mais importantes dos últimos 50 anos. A maioria das pessoas só
conseguiu ter a compreensão deste fato quando a trajetória de David Robert
Jones neste plano chegou ao fim na noite de 10 de janeiro de 2016.
A crítica musical, em sua maioria, rendeu elogios a
★, alegando que o álbum é bom,
apesar de não haver nenhuma conexão com o Pop
ou o Rock. Alguns jornalistas, no
alto de sua canalhice e do seu poder enquanto editores de cadernos culturais de
jornais de grande circulação, ainda tiveram a
maldade de comparar a suposta excentricidade de Bowie à de Prince, debochando
de sua reclusão, de sua discrição e de seu senso musical apurado. Por outro
lado, o vigésimo-quinto foi muito bem-recebido pelos fãs e pelo público, não
apenas por ser um retorno do astro ao disco depois de três anos, mas também por
ter sido o último álbum lançado por David Bowie em vida.
A capa de ★
recebeu a assinatura do designer Jonathan Barnbrook, que trabalhava com Bowie
desde Heathen (2002). A escolha de imagem foi uma estrela
negra solitária em um fundo branco, com seis fragmentos de estrelas abaixo
formando a palavra BOWIE em letras estilizadas. De todas as capas de discos
lançados pelo camaleão inglês, esta foi a única na qual o artista não esteve
sequer presente na capa do disco. David Bowie tinha razões pessoais e
artísticas muito fortes para isso. Nós a respeitamos…
Recebi a proposta de escrever este texto em 09 de janeiro
de 2016, um dia depois do aniversário do Mestre e do lançamento de ★. Como David Bowie sempre foi um dos meus artistas
preferidos, não fui capaz de negar o pedido e comecei a me preparar para a
tarefa de decifrar mais um enigma proposto pelo camaleão inglês. Este texto
tinha a intenção de ser uma homenagem, porém nada póstumo.
Nem eu, nem ninguém contava que seríamos
surpreendidos pela saída de cena inesperada de Mr. Jones. Tal qual David Bowie
decidira matar Ziggy Stardust na frente do público e do mundo no alto do palco
do Hammersmith Odeon em 3 de julho de 1973, David Robert Jones morreu em 10 de
janeiro de 2016 em New York City e matou a sua melhor personagem: David Bowie,
que, tal qual sua criação mais célebre, passou a habitar o recôndito mais
valioso de nossas memórias afetivas, no lado esquerdo de nossos peitos. Ou a
viver em uma estrela longínqua...
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