NEY MATOGROSSO – O CAIR DA TARDE
(1997)
Em
1997 já era possível eleger qual tinha sido a voz mais ousada da música
brasileira da segunda metade do século XX: seu nome era Ney Matogrosso. Em pouco
mais de duas décadas e meia de atividades musicais, Ney já tinha feito um pouco
de quase tudo – cantou música Pop à
frente do grupo Secos & Molhados, virou um Homem de Neanderthal para, logo depois, ser um dos Bandidos mais ilustres da MPB. Anos
depois, tornou-se em um irresistível Pescador
de Pérolas uma década e meia depois ao interpretar os clássicos do
cancioneiro brasileiro e fez projetos especiais memoráveis baseados no legado
musical de Chico Buarque e Ângela Maria.
Entretanto,
o projeto musical que Ney Matogrosso concretizou em 1997 era mais radical em
relação a tudo que tinha feito até então. O Cair da Tarde seria um disco no qual Ney apenas interpretaria o
repertório de Heitor Villa-Lobos. Porém, a proposta se completou com canções do
maestro soberano Antônio Carlos Jobim, um grande discípulo e admirador da obra
de Villa-Lobos. Clássicos da Bossa Nova e da música e câmara, da MPB e de
trilhas sonoras do Cinema Brasileiro ao lado de cirandas e das cirandas mais
belas do folclore nacional, um repertório ousadíssimo e incomum para os fãs e
seguidores do astro. Algo impensável de se cantar no Brasil do final da década
de 1990, embalado pela vulgaridade musical do pagode romântico e de bundas
televisivas que tremiam loucamente ao som de tchans ordinários e de boquinhas de garrafas assanhadas.
Ney
Matogrosso convocou um time extraordinário de músicos para esta gravação:
Leandro Braga (piano), Márcio Montarroyos (trompete), Zero (Percussão), Ricardo
Silveira (violões e guitarras), Bruce Henry (baixo acústico) e Zé Nogueira
(sopros) compuseram a banda de apoio de O Cair da Tarde.
Em algumas faixas, o grupo Uakti (Marco Antônio Guimarães, Arthur Ribeiro,
Paulo Sérgio Santos e Décio Ramos) fez participações especialíssimas com sua
sonoridade regional e bastante peculiar. A obra de Tom Jobim e Villa-Lobos não
recebeu um tratamento sinfônico e grandiloquente, típico da tradicional música
de câmara, porém foi abordada com enorme reverência e delicadeza por Ney.
“Cair
da Tarde” (Heitor Villa-Lobos & Dora Vasconcellos) é o número de abertura
do disco: o instrumental delicado do Uakti, somado ao trabalho fenomenal dos
músicos da banda de apoio de Ney (com destaque para o piano de Leandro Braga e
os sopros de Márcio Montarroyos), nos transporta para um belo recanto de uma
floresta do Amazonas, com seus bichos soltos pela mata exótica e verdejante. As
faixas seguintes, abordam a melancolia e as belezas de um Brasil que não existe
mais, destruído pela insensibilidade humana e pela ganância dos homens. “Veleiros”,
“Melodia Sentimental (Heitor Villa-Lobos & Dora Vasconcellos), “Prelúdio
Número 3 [Prelúdio da Solidão] (Heitor Villa-Lobos & Hermínio Bello de
Carvalho), “Modinha” e “Sem Você” (Antônio Carlos Jobim & Vinícius de
Moraes) são exemplos deste fato.
Márcio Montarroyos |
UAKTI |
O Cair da Tarde surpreende os
fãs de Ney Matogrosso e os ouvintes de Jobim e Villa-Lobos por apresentarem
releituras intimistas de clássicos do cancioneiro brasileiro. “Trenzinho do
Caipira” (Heitor Villa-Lobos & Ferreira Gullar) e “Águas de Março” (Antônio
Carlos Jobim) receberam releituras exuberantes e bastante distintas dos
originais. “Pato Preto” (Antônio Carlos Jobim) fecha o disco, com esperança de
trazer uma espécie de alento para o ouvinte, depois de ter sido exposto à tanta
tristeza.
Não
há dúvidas de que O Cair da Tarde é o projeto musical mais audacioso da carreira de
Ney Matogrosso. Apesar de ser um disco bastante radical, já vendeu mais de 70
mil cópias, um marco para a carreira de Ney. Por outro lado, há alguns fatos
importantes sobre este disco que são dignos de registro:
·
Turnê
–
Ney Matogrosso não saiu em turnê com este disco. Segundo o artista, ele queria
colocar uma ilha dentro de um lago em pleno palco, com o Uakti de um lado e a
banda de apoio do outro. O altíssimo custo da empreitada fez com que Ney
desistisse da ideia, para tristeza de seus fãs, que até hoje imaginam como
teria sido este espetáculo;
·
Capa
do Disco –
A capa de O Cair da Tarde traz a foto de um besouro que pertence ao acervo
científico do Museu Nacional, administrado pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). É a única imagem da discografia de Ney Matogrosso que não traz
uma pose do cantor ou qualquer ilustração que fizesse alusão ao artista;
·
Temática
–
Antes de Maria Bethânia ter feito bastante sucesso com o repertório do CD e
show Brasileirinho, Ney Matogrosso foi uma das
primeiras vozes do alto escalão a lançar seu olhar para um Brasil menos conhecido
por parte dos ouvintes de MPB.
O
Cair da Tarde
não é apenas um dos trabalhos mais expressivos da obra de Ney Matogrosso, como
também é um dos momentos mais belos da história da música brasileira. Um disco
que deve ser ouvido no volume máximo a partir das 17h30 de cada tarde, para que
o ouvinte possa se despir de sua máscara urbana insensível e opressora para
poder viver a experiência indescritível de viver um Brasil que só existe nas
obras de Heitor Villa-Lobos e Antônio Carlos Jobim.
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