UM MANTO AZUL
& BRANCO PARA UMA NAÇÃO FERIDA
"Salve o
samba, salve a santa, salve ela
Salve o manto azul e branco da Portela
Desfilando triunfal sobre o altar do Carnaval"
(Paulo
César Pinheiro & Mauro Duarte na voz de Clara Nunes)
O carnaval de 2017 finalmente acabou.
Aqui na terra da garoa, começou com um final de semana de antecedência e acabou
bem depois do domingo após a quarta-feira de cinzas com muito custo. Os
festejos carnavalescos sempre foram negócio sério por aqui: o Nordeste ferve ao
som do frevo e do axé, enquanto o Rio de Janeiro e São Paulo são animados pelos
blocos de rua, bailes e os desfiles das escolas de samba, por exemplo. Apesar
da seriedade, nunca fui um folião, digamos, característico: minha falta de
apreço por multidões e meu gosto musical incomum me causavam um certo desprezo
por esta época do ano.
Venho, com muito orgulho, de uma
família de foliões. Meus pais são apaixonados pelos desfiles das escolas de
samba do Rio de Janeiro – meu pai, por exemplo, sempre ganha de presente de
aniversário o CD com os sambas-enredo que vão cruzar a Sapucaí no ano seguinte
todo mês de dezembro; facilitando muito a minha vida, pois o Sr. Orlando faz
anos no último mês do ano, época na qual os meus neurônios já deixaram de
funcionar normalmente. Meu avô materno sempre levava os filhos para assistir
aos desfiles da janela do escritório dele na esquina da Av. Rio Branco na época
em que o sambódromo nem sequer existia.
O samba sempre teve seus pés no
protesto e nos ideais de libertação do indivíduo. Por isso, o carnaval não
deixa de ser uma festa política e de celebração dos prazeres da carne sem
restringir classes sociais, etnias ou sexualidade. Como consequência dos
últimos acontecimentos no Brasil, os festejos de rua cresceram assombrosamente
nos últimos anos. São Paulo, por exemplo, tem vivenciado o florescimento dos
blocos carnavalescos e da irreverência dos foliões dispostos a festejar e a
protestar contra o status quo. A
diversidade, por outro lado, tem marcado as agremiações de rua do Rio de
Janeiro, cantando e tocando canções do repertório clássico do samba até as
eternas criações do rock ‘n’ roll a
plenos pulmões.
Em meio à crise econômica e política
que o Brasil tem vivido, a quantidade de pessoas indo às ruas protestar contra
o governo golpista e ilegítimo foi tão expressiva que nem as principais redes
de TV conseguiram esconder os gritos de “Fora Temer” em rede nacional. A
disposição das pessoas para festejar em meio à crise é de fazer vista ao mundo
inteiro. Enquanto a Terra da Garoa fervia com os blocos carnavalescos de todos
os tipos – os Beatles, Rita Lee, Caetano Veloso, David Bowie, Gal Costa e Beth
Carvalho foram alguns dos homenageados –, a Portela reinou soberana durante o
carnaval da Cidade Maravilhosa depois de 47 anos sem levar o título para
Madureira.
Apesar de não ser uma pessoa
necessariamente religiosa, fiz meu pedido em oração para que os foliões fossem
protegidos durante os festejos. Infelizmente, não foi o que ocorreu: os relatos
de furtos e assaltos eram sem fim (um primo meu teve a infelicidade de ter DOIS
celulares roubados no Rio de Janeiro!), as histórias de violência contra
mulheres extrapolaram os limites do suportável – a cada três minutos, uma
mulher foi agredida –, as ruas de São Paulo eram desocupadas com a truculência,
a agressividade e a conivência de um prefeito que se diz preocupado com as
belezas da cidade.
Em relação às violências sofridas
pelas minorias, duas histórias ocorridas durante o período de carnaval me
horrorizaram por completo. A primeira foi o habeas
corpus concedido pelo STF ao goleiro Bruno, acusado e condenado de matar,
esquartejar e ocultar o cadáver de Eliza Samúdio, mãe de seu filho. O fato de
nossa Suprema Corte privilegiar ricos e poderosos já não me causa tanta espécie
hoje em dia, porém a reverência de torcedores e clubes de futebol ao ex-craque
do Flamengo me surpreenderam bastante: ele recebeu ofertas de clubes de futebol
e pedidos de selfies com torcedores e marias chuteiras (?!). A prova de
que o brasileiro médio é fã de bandidos endinheirados como Bruno e Eike Batista
é concreta, abençoada pelo GAFE (Globo, Abril, Folha e Estadão) e digna da minha náusea mais intensa e sincera.
A segunda história que me tirou do
sério foi o assassinato brutal da travesti Dandara dos Santos, espancada por
vários homens. O fato da transexual ter entrado para as estatísticas,
infelizmente, não me surpreendeu, pois vivemos sob a égide de uma barbárie
permanente. O dado que me deixou perplexo foi que o crime foi filmado por um
dos agressores: Dandara implorava pela vida, enquanto seus algozes não
hesitavam em agredi-la mais e mais. Não bastava bater, era preciso agredir,
assassinar e filmar para que houvesse uma prova de afirmação da homofobia
travestida com a desculpa de que o homem heterossexual é superior aos que não estariam
no mesmo patamar que o dele. A travesti foi tratada com a indiferença dos
grandes meios de comunicação, não foi notícia nas primeiras páginas dos
jornais, mas foi objeto de comoção daqueles que estão fartos de serem tratados
com desdém pelas maiorias.
Quando Clara Nunes ganhou “Portela na
Avenida” de presente do marido Paulo César Pinheiro e do violonista Mauro
Duarte, ela ficou comovida com a comparação das alas da Portela com o manto
azul e branco de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Minha esperança
é que este manto sirva não apenas para dar a proteção necessária à escola de
samba de Madureira, como também sirva para guardar nosso país tão ferido de
valores, de respeito e de compaixão dos males dos reacionários de tocaia e de
plantão...
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