31 de agosto de 2017

DISCOS DE VINIL # 40

PATTI SMITH – HORSES (1975)


Jesus died for somebody’s sins, but not mine.
(Patti Smith, 1975)

Na primeira metade da década de 1970, Patricia Lee Smith era uma jovem de 20 e poucos anos que morava em Nova York e já tinha feito um pouco de tudo: posou nua para fotógrafos, atuou em uma peça de teatro, iniciou amizades e teve relacionamentos amorosos com o ator, roteirista e dramaturgo Sam Shepard e com Allen Lanier (tecladista do Blue Öyster Cult). Além disso, viveu e amou intensamente seu melhor amigo, o aspirante a artista plástico e (posteriormente) fotógrafo renomado Robert Mapplethorpe em lugares dos mais remotos da Big Apple – dentre estes, o lendário Chelsea Hotel, que já abrigou ilustres como Bob Dylan, Tom Waits, Janis Joplin, Leonard Cohen, Iggy Pop e Arthur C. Clarke. Enquanto não estava envolvida nas criações artísticas ao lado de Mapplethorpe, Patti escrevia poemas e críticas de música para as revistas Creem e Rolling Stone e ainda tinha acesso ao círculo restrito de “contatos” de Andy Warhol.

Patti ao lado de Robert Mapplethorpe

Patti Smith acreditava que seria revelada para o universo através da poesia ou via artes plásticas. No entanto, quando recebeu um convite para recitar seus poemas em público ao lado do guitarrista Lenny Kaye, viu que poderia escrever ser uma estrela do Rock sem deixar de fazer poesia. O duo Smith-Kaye logo se tornou um trio com a chegada do pianista e tecladista Richard Sohl, o que automaticamente trouxe uma delicadeza para a aspereza do som e fúria que Patti e Lenny geravam em cena. Pouco depois, vieram o baterista Jay Dee Daugherty e o baixista Ivan Kral para completar o grupo. Em pouco tempo, estes jovens eram tão requisitados pelas pessoas que iriam ao CBGB quanto os Ramones, os Talking Heads e o Blondie.

Patti ao lado de Sam Shepard

O sucesso de Patti Smith na cena novaiorquina fez com que o executivo Clive Davis prestasse mais atenção naquele som e contratasse aquela jovem de 28 anos petulante e repleta de cara de pau para gravar um disco em meados de 1975. Para a produção do disco, foi recrutado o cantor, compositor e ex-membro do Velvet Underground John Cale. Apesar de ter recebido críticas excelentes, a produção de Horses foi turbulenta, com desentendimentos constantes entre Patti e Cale. Era notável que o produtor e a artista eram representantes de duas forças completamente antagônicas, tais quais Vênus e Marte ou Apolo e Dionísio, o que não interferiu no fato do debut album de Patti Smith ser considerado sua obra-prima até hoje.

Patti ao lado de Bob Dylan

A imagem de capa do disco, clicada por Robert Mapplethorpe, merece um parágrafo à parte, por mostrar uma cantora que foge a todos os padrões de feminilidade e beleza: o cenário era o apartamento de cobertura de Sam Wagstaff, companheiro de Robert, no Greenwich Village, número 1 da Fifth Avenue, com Patti Smith vestindo uma camisa social branca com o paletó pendurado no ombro esquerdo, como uma versão punk e lésbica de Frank Sinatra. Por ser uma imagem tão autêntica e tão intensa no que diz respeito à integridade artística que Patti sempre ambicionou e o jogo de luz e sombras em preto e branco que Mapplethorpe sempre realizou enquanto fotógrafo, a capa de Horses tornou-se uma das mais emblemáticas de toda a história da música recente. A intelectual Camille Paglia declarou certa vez que aquela foto é uma das melhores imagens jamais feitas de uma mulher. No entanto, Patti escreveu em seu primeiro livro de memórias, Só Garotos, que a foto é fruto do amor dela e de Robert pela arte: “Até hoje quando olho para essa foto, nunca me vejo. Vejo nós dois”.





Horses possui apenas oito faixas e uma bonus track (uma releitura veloz e furiosa de “My Generation”, do The Who), que foi incorporada a uma reedição em CD a partir de 1996. No entanto, cada uma destas faixas revela não apenas a fúria, o lirismo e a imensa ousadia de Patti Smith, como também evidencia o talento indiscutível de Lenny Kaye, Richard Sohl, Jay Dee Daugherty e Ivan Kral como músicos. A faixa de abertura, o medley “Gloria” juntava trechos do poema “In Excelsis Deo”, de Patti com uma releitura frenética da canção de mesmo nome composta e gravada por Van Morrison e pelo The Doors anos antes. A faixa seria apenas mais uma canção de rock entoada por uma mulher se Smith não tivesse cantado literalmente que “Jesus died for somebody’s sins, but not mine” (Jesus morreu pelos pecados dos outros, mas não pelos meus). Na medida em que a voz deixa de sussurrar ao som do piano de Sohl para se tornar em gritos e berros do desejo uma vez escrito por Morrison, Patti retorna ao trecho mais controverso de seu poema e não deixava dúvidas de que veio para o mundo do Rock para fazer muito barulho e confusão.

Patti no colo de Clive Davis

O disco segue com “Redondo Beach”, um misto de Rock e Reggae baseado em um poema escrito por Patti Smith em 1971 e que foi musicado por Richard Sohl e Lenny Kaye anos depois. A canção narra uma briga de Patti com uma de suas irmãs mais novas, Linda, que, por sinal, jamais chegou a cumprir o destino trágico descrito pelos versos da older sister. Um fato interessante é que Morrissey chegou a gravar um cover inusitado deste clássico e que saiu no álbum Live at Earls Court (2005). Já “Kimberly” (Patti Smith, Allen Lanier & Ivan Kral), quinta faixa de Horses, é uma homenagem da cantora à sua irmã caçula e narra episódios ao som da batida sincopada de Jay Dee e da marcação do órgão Hammond B3 de Sohl.


Patti ao vivo em San Francisco - 1975

Uma das canções mais populares de Horses é a deliciosamente frenética “Free Money”, no qual Patti debocha descaradamente da importância do vil metal em meio aos delírios de uma sociedade pautada pelo consumo – e olha que ela já nos dizia isso desde os anos 1970. O que chega a ser mais surpreendente é que esta parceria de Smith e Lenny Kaye recebeu algumas releituras, inclusive uma feita por Sammy Hagar (segundo vocalista do Van Halen). O fato é que o espírito desta canção, por exemplo, fez de Patti Smith a madrinha do movimento Punk, amada por músicos das mais distintas tribos. Outro exemplo deste frenesi que era característico da música que se produzia em Nova York em meados dos anos 1970 é o insano medley “Land” (sétima faixa do disco), dividido em três partes: o poema “Horses” (Patti Smith), uma releitura de “Land of a Thousand Dances” (Chris Kenner & Fats Domino) e o poema “La Mer(de)” (Patti Smith). Os “puristas” do movimento debochavam dos versos smithianos, claramente influenciados por Jim Morrison, Bob Dylan e (principalmente!) Arthur Rimbaud; porém, o fato é que poucos tinham a competência de desconstruir uma artista de envergadura tão incomum – afinal de contas, Patti Smith conseguia ser mais agressiva do que Morrison, Hendrix e Dylan juntos




“Birdland”, a terceira faixa do disco, tem uma influência mais jazzística graças ao dedilhar do piano de Richard Sohl. Enquanto a improvisação corria solta pelos Electric Lady Studios, Patti tentava evocar o espírito de Jimi Hendrix e se inspirava nas memórias de Wilhelm Reich escritas por seu filho Peter para atingir o grau máximo da sensibilidade. Já “Break it Up”, um dos momentos mais emocionantes de Horses, é uma parceria de Patti Smith com o guitarrista Tom Verlaine (Television). A inspiração para esta canção surgiu de um sonho da autora de Só Garotos com Jim Morrison – neste episódio, o eterno vocalista do The Doors aparece com asas angelicais, mas preso em um umbral de mármore que o impedia de voar. O pedido de Jim era simplesmente de que a moça saísse de seu estado de letargia e quebrasse o mármore para que, enfim, o cantor de “Light My Fire” pudesse seguir sua jornada rumo à eternidade: “Snow started falling / I could hear the angel calling / We rolled on the ground, he stretched out his wings / The boy flew away and he started to sing / He sang, “Break it up, oh, I don’t understand / Break it up, I can’t comprehend / Break it up, oh, I want to feel you / Break it up, don’t look at me”.


A faixa que encerra Horses, “Elegie”, é uma singela homenagem feita por Patti Smith e Allen Lanier para aqueles que já partiram desta vida. O mais interessante é que a canção se tornou um número cada vez mais emocionante na medida em que ele é tocado ao vivo e mostra Patti em meio a lamentos de dor e saudade para que, ao final, ela recite os nomes daqueles que nos deixam saudades. Em uma edição especial comemorativa de 30 anos de seu disco de estreia, que contém uma gravação de um show gravado em Londres, os nomes de Jimi Hendrix, Jim Morrison, Robert Mapplethorpe, Todd Smith (irmão da cantora) e Fred “Sonic” Smith (líder do MC-5 e marido da madrinha do Punk) e Richard Sohl (falecido aos 37 anos por um ataque do coração, em 1990) foram lembrados. Já na última noite de apresentações do lendário clube CBGB, Patti Smith fez questão de relembrar de todos os mitos do Punk Rock que já não estavam mais entre nós naquela fatídica noite de 2006 – os acordes de “Elegie” foram exatamente os últimos que ecoaram pelas paredes imundas do templo do Punk nova-iorquino antes de Hilly Kristal fechar as portas. Torna-se impossível não se emocionar com as perdas de Smith, visto que elas são perdas musicais que repercutem em cada um de nós…



Horses chegou aos 40 anos de idade no dia 13 de dezembro de 2015, com direito a uma turnê comemorativa de aniversário. Queria ter sido uma mosquinha para ter assistido e ver que Patti Smith poderia até ter envelhecido um pouquinho, mas sua música continua ousada e agressiva como sempre foi no decorrer destas últimas quatro décadas. Enquanto vou juntando dinheiro ou me conformando com frustração de ficar por estas bandas mesmo, o jeito é celebrar o legado atemporal deste disco maravilhoso…

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