7 de setembro de 2017

DISCOS DE VINIL # 41

CHICO BUARQUE – CARAVANAS (2017)




         O vocábulo caravana é originado do árabe e significa comboio de viajantes, peregrinos ou mercadores dispostos a percorrer grandes distâncias. Isto posto, cabe deixar claro que o mote utilizado por Chico Buarque para batizar o seu 23° álbum de estúdio é bastante peculiar: as nove canções de Caravanas fazem referência direta ou indiretamente a alguma espécie de viagem, seja esta literal ou simbólica.


         Caravanas é composto por nove canções: duas já gravadas por Chico Buarque em projetos alheios e sete inéditas. As referências musicais e literárias utilizadas por Chico para compor as novidades de seu repertório são bem distintas: “Tua Cantiga”, faixa de abertura do álbum e escolhida como o primeiro single do disco, é uma parceria do autor de “Meu Caro Amigo” com o pianista Cristóvão Bastos – com quem compôs e gravou “Todo Sentimento”, em 1987. A melodia de Cristóvão foi levemente inspirada em uma obra de Bach e nos velhos lundus que eram compostos na virada do século XIX para o início do século XX. Alvo de polêmicas devido ao verso “Largo mulher e filhos”, os versos da canção expõem um sujeito poético romântico, disposto a se aventurar por sua musa adorada.



         A segunda faixa do CD, “Blues pra Bia”, é outra caravana amorosa: o eu-lírico forjado por Chico compôs uma canção para outra musa: uma figura inacessível graças ao fato de se enamorar por... mulheres! Chico trata da homossexualidade de Bia sutil e delicadamente, algo impensável em termos de música brasileira décadas atrás – “(...) no coração de Bia / Meninos não têm lugar / Porém nada me amofina / Até posso virar menina / Para ela me enamorar”; uma novidade temática para um compositor acusado recentemente de machista e de não estar sintonizado com os tempos atuais.



         “A Moça do Sonho”, parceria de Chico com Edu Lobo, foi composta para a trilha sonora da peça Cambaio, cuja primeira montagem foi dirigida por João e Adriana e Falcão em 2001. Gravada por Maria Bethânia para seu álbum Maricotinha (2001), nunca tinha recebido a voz de Chico. A canção versa sobre uma figura feminina que habita os devaneios mais selvagens do sujeito poético. Uma caravana poética em busca do desejo: “Há de haver algum lugar / Um confuso casarão / Onde os sonhos serão reais / E a vida não / Por ali reinaria meu bem / Com seus risos, seus ais, sua tez / E uma cama onde à noite / Sonhasse comigo / Talvez”. “Jogo de Bola”, a quarta faixa de Caravanas, é mais uma das canções de Chico Buarque sobre uma de suas maiores paixões: o futebol! Falar sobre os prazeres surgidos das coisas mais simples da vida em tempos nos quais a indelicadeza se tornou uma constante no que diz respeito às relações humanas: “Salve o futebol, salve a filosofia / De botequim, salve o jogar bonito / O não ganhar no grito a simpatia / Quase amor / Da guria que antes do apito final / Vai sem aviso embora”.


Dois Chicos: o Buarque e o Brown

         Chico Buarque decidiu fazer conexões com as gerações mais jovens em seu 23° álbum de estúdio. A valsa “Massarandupió” é uma parceria de Mestre Buarque com o neto Chico Brown (filho de Helena Buarque com o músico Carlinhos Brown). Os versos do avô versando sobre o neto, que brincava nas areias da praia de Massarandupió quando menino foram o mote para uma das faixas mais belas de Caravanas. Já a conexão do autor de “Construção” com a neta Clara se deu com a regravação de uma das obras mais belas do cancioneiro buarqueano: “Dueto” foi gravada pela primeira vez para o álbum Com Açúcar, Com Afeto (1980), de Nara Leão e recebeu uma regravação, brejeira e com menções ao amor que existe nas mídias sociais.


Chico ao lado de sua neta Clara Buarque

         “Casualmente”, é uma parceria de Chico Buarque com o baixista Jorge Helder que tinha sido originalmente idealizada para a voz de Omara Portuondo, uma das maiores vozes de Cuba. Na impossibilidade da estrela principal de Buena Vista Social Club gravar a canção em questão, Chico decidiu retomar os trabalhos de composição para o repertório de Caravanas. A caravana em questão faz uma viagem sentimental à Cuba de tempos românticos, que jamais se materializarão novamente: “Não voltará nunca mais / A canção sentimental / Que casualmente em Havana escutei cantar / Uma mulher / Como já não verei / Outra vez nada igual”. Já a oitava faixa do disco, “Desaforos”, é um plácido recado aos tribunais das redes sociais, sempre dispostos a julgar e condenar qualquer um prestes a desafiar as convenções, o senso comum ou o “coro dos contentes”. O recado de Chico é sutil, porém certeiro e claro: “Alguém me disse / Que tu não me queres / E que até proferes desaforos pro meu lado / Fico admirado por incomodar-te assim / Jamais pensei / Que pensasses em mim”. Parece que, depois desta gravação, os detratores da Família Buarque terão muita artilharia para dedicar ao “mulato que [apenas] toca boleros”, petista e que viveria às custas dos incentivos da Lei Rouanet em um suntuoso apartamento em Paris.


Chico ao lado do baixista Jorge Helder,  seu parceiro musical em "Casualmente"

         A última canção do disco, “As Caravanas”, é uma crônica feroz da classe média carioca em um de seus momentos de maior pânico: a chegada de integrantes das comunidades “negras e imundas” nas praias “alvas e límpidas” da Zona Sul carioca em caravanas infindáveis. A alucinação gerada pela luz forte do sol é apenas um pretexto para justificar a sanha violenta de brancos dispostos a fazer uso dos dispositivos mais covardes para se sentir minimamente protegida ou uma fonte de alucinação de quem ouve vozes de negros escravizados em caravelas, reprimidos em transportes públicos sucateados que os levam para o idílio das praias do Leme ou de Copacabana.


         “As Caravanas” é uma das canções mais políticas do repertório de Chico Buarque, pois relata o sentimento mais torpe e medíocre da classe média brasileira a partir de um viés histórico, que muitos de nós acabamos por esquecer. Os versos de Chico ganharam um tom ainda mais forte graças aos arranjos de cordas de Luiz Cláudio Ramos e a participação de Rafael Mike, do Dream Team do Passinho, fazendo beat box. É o fechamento de um dos melhores álbuns de Chico em mais de 20 anos.

Chico ao lado de Rafael Mike, do Dream Team do Passinho


         Apesar de seus brevíssimos 28 minutos, Caravanas é um álbum que merece ser ouvido por ouvintes de todas as gerações para reconhecer o talento indiscutível de Chico Buarque como um dos maiores tradutores da nação brasileira em matéria de canção.


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