29 de janeiro de 2018

TROVA # 144

HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS

Não julgue um livro pela capa / Não julgue um garoto pelo rosto


“They say I must be one of the wonders
Of God's own creation
And as far as they see, they can offer
No explanation”
(Natalie Merchant, 1995)


“A mensagem de Extraordinário é atemporal, mas o tempo em que vivemos nunca precisou tanto dela. O momento atual é de muita polarização política, em que ambos os lados estão tão convencidos de que os próprios pontos de vista estão corretos que descartam os outros de maneira automática. O que Extraordinário nos ensina é que todos têm a própria história. Todo mundo tem um ponto de vista. E se parássemos para tentar entender por que as pessoas pensam o que pensam, descobriríamos que temos muito mais semelhanças do que diferenças.”
(Stephen Chbosky, 2017)


         Aproveitei o período de férias para assistir a um dos filmes mais aguardados da temporada cinematográfica de 2017: Wonder [Extraordinário]. Baseado no best seller infanto-juvenil de R. J. Palacio, a trama está centrada em Auggie Pullman, um menino de 11 anos de idade portador da Síndrome de Treacher-Collins, causadora de sérias deformações faciais.


         Até os 11 anos de idade, Auggie passou a maior parte de sua vida em consultórios médicos, hospitais e mesas de cirurgia, o que não lhe permitiu a vivência de uma vida escolar (o menino fora educado pela própria mãe) e, por consequência, foi privado do convívio de outras crianças. Quando chega o momento do menino ter que, enfim, ir à escola, é necessário que ele se prepare para a adaptação e para o convívio com os seus pares, deixando todos em estado de apreensão. O primeiro ano letivo de Auggie Pullman é um retrato fiel das causas e efeitos do bullying em sala de aula e de como devemos lidar com a tolerância e a diversidade nos tempos de hoje. As atuações de Julia Roberts (Isabel Pullman), Owen Wilson (Nate Pullman) e do menino Jacob Tremblay (Auggie Pullman) fogem dos excessos de pieguice e, capitaneados pelo diretor Stephen Chbosky, fogem dos excessos de pieguice de forma certeira e equilibrada, garantindo um ótimo resultado final: um filme para crianças, jovens, adultos e, especialmente para os profissionais da área de educação.


R. J. Palacio – pseudônimo da designer gráfica e escritora nova-iorquina Raquel Jaramillo – se inspirou em uma experiência própria para escrever seu livro: ela estava em uma fila para comprar sorvete ao lado de seu filho de três anos quando ambos se depararam com uma menina portadora da Síndrome de Treacher-Collins. O menino, assustado com a aparência da garota, começou a chorar, para desespero da mãe, que saiu do local completamente envergonhada. Mais tarde, Palacio ligou o rádio e ouviu “Wonder”, um dos maiores sucessos da cantora e compositora Natalie Merchant e encontrou na canção e no lamentável incidente um material e tanto para uma lição de vida.

R. J. Palacio, pseudônimo da designer gráfica Raquel Jaramillo


      O resultado final da empreitada foi Wonder [Extraordinário], romance infanto-juvenil publicado em fevereiro de 2012, traduzido em várias línguas e líder de vendas do New York Times por anos. Raquel Jaramillo deixou de viver uma vida convencional como designer gráfica para se tornar na escritora R. J. Palacio e ganhar o mundo, como autora de milhões de livros vendidos. Natalie Merchant, bastante emocionada com a homenagem rendida por Palacio, divulgou o livro não apenas em entrevistas, como também nas suas redes sociais e em seu site oficial. A ocasião do lançamento do romance foi um belo pretexto para que Natalie nos contasse um pouco mais sobre o seu processo de criação: “Wonder”, a canção, foi composta em 1994 a partir de alguns ocorridos com uma criança especial e foi o segundo single de Tigerlily, álbum de estreia da artista logo após a sua saída do grupo 10.000 Maniacs.


O videoclipe de “Wonder” foi dirigido por Jake Scott (filho do cineasta Ridley Scott) e traz Natalie cantando e dançando junto com mulheres de todos os tipos e com portadoras de autismo e Síndrome de Down. Quatro minutos e meio de música, poesia, solidariedade e diversidade musical que ajudaram Natalie Merchant a vender milhões de cópias de Tigerlily pelo mundo todo.


Dentre as pessoas que se emocionaram e se identificaram com “Wonder” estavam as irmãs gêmeas Kathy e Kelly Daley, diagnosticadas com uma doença de pele congênita e incurável desde o berço. Através de uma carta do pai das meninas, Natalie Merchant conheceu as meninas, conseguiu estabelecer uma amizade com as duas e até chegou a convidar as “Angelinean Sisters” para cantar em uma das faixas de Motherland, seu terceiro álbum de estúdio.


O documentário Paradise is There, lançado na ocasião dos 20 anos do lançamento de Tigerlily, traz uma longa entrevista de Natalie com Nancy Daley, mãe das gêmeas, comentando a respeito da importância de “Wonder” para a autoestima de toda a família. As irmãs Daley faleceram em 2006 e deram uma lição de vida para todos os que as conheceram. O resgate da saga desta família em busca pela sobrevivência através do projeto comemorativo de Natalie Merchant demonstrou não apenas isso, como também foi uma homenagem da artista às meninas que lhe ensinaram muito mais do que possa existir entre artistas e fãs.



Muitos de nós vivemos vidas comuns graças ao fato de sermos belos e saudáveis de acordo com os olhos do senso comum, pois não temos a necessidade de lidar com hostilidade e preconceito por causa do corpo que habitamos. As irmãs Daley e Auggie Pullman são donos de histórias extraordinárias por extrapolarem os limites da canção, da ficção e de certas convenções da vida real para exercitarem seu livre direito de ser e estar, de ir e vir. As sagas (reais e ficcionas) destes seres humanos não são apenas convites para convivermos e aceitarmos a diferença e a diversidade da maneira mais natural possível: elas também devem nos servir como pretexto para agradecermos ao Universo por não sofrermos de doenças ou síndromes congênitas. As melhores lições de vida são fruto da dor de sermos diferentes, porém extraordinários...


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