SONS
DA QUARENTENA
Adriana Calcanhotto é a prova
de que o isolamento social pode até ser produtivo...
“No
dia em que fui mais feliz...”
(Adriana
Calcanhotto & Antonio Cicero, 1994)
1
Adriana Calcahotto surgiu na minha vida há exatos 30 anos atrás: seu primeiro álbum, Enguiço (1990), tinha uma canção que tocava incessantemente durante as aventuras e desventuras de Mariana Szimanski, personagem de Renata Sorrah na novela Rainha da Sucata, de Silvio de Abreu. Eu tinha 9 anos de idade e não tinha condições para compreender a complexidade de versos como “E o meu coração embora / finja fazer mil viagens / fica batendo parado / naquela estação”, escritos por Caetano Veloso. De qualquer maneira, Adriana (Adrix para os íntimos) plantou a semente da dúvida e da intriga na estação dos meus afetos musicais.
Na medida
em que fui deixando de dissociar o trabalho musical de Adriana Calcanhotto das
trilhas sonoras das telenovelas da Rede Globo, fui descobrindo, aos poucos, que
estávamos diante de uma cantora e compositora refinada, de uma sofisticação que
ia muito além do dial da JB FM, da
Antena 1, da Alpha, ou dos bons tempos da 98 FM. Graças à influência de duas
primas paternas, descobri o terceiro álbum de Adriana, A Fábrica do Poema (1994)
e me apaixonei perdidamente por seu trabalho. Quando ela lançou Maritmo (1998), comecei a comprar seus
discos e fui me intrigando ainda mais: versos como “Entre por esta porta agora / E
diga que me adora / Você tem meia
hora / Pra mudar a minha vida”
causaram um impacto profundo semelhante ao que eu tive com a Literatura de
Clarice Lispector na década seguinte –compreender o que estava por trás das
letras de Adrix, Antonio Cicero, Waly Salomão e outros letristas com quem ela
estabelecia parcerias incríveis e geniais era uma tarefa bastante incomum para
um jovem de 17 anos de idade que vivia em plena década de 1990, falemos a
verdade...
Foi no
lançamento do álbum / turnê Cantada
(2002) que eu tive a coragem de ir a um show sozinho pela primeira vez na vida:
vejam a barreira cultural que eu, um suburbano carioca de 21 anos da Ilha do
Governador sem praticamente um centavo no bolso, tive que atravessar ao entrar
no Canecão (templo musical da MPB que ficava em Botafogo, Zona Sul do Rio de
Janeiro) apenas para ver Adriana Calcanhotto ao vivo. Essa é a primeira de algumas
ousadias que eu devo a ela. Falar/escrever sobre seu trabalho musical é ter a
certeza absoluta de estar remexendo em um baú de memórias afetivas e de shows
memoráveis. Poderia ficar falando da beleza de O Micróbio do Samba (2012-2013)
por horas seguidas, no qual uma interpretação de “Argumento” (Paulinho da
Viola), em meio a luzes e fumaças transformava o palco em um cenário de um de filme
de Bergman. Ou então poderia tecer várias crônicas musicais sobre espetáculos
mais recentes como Olhos de Onda (2014), A Mulher do Pau
Brasil (2018) ou Margem (2019-2020) com a paixão e as
técnicas de escrita e análise que fui adquirindo pela vida acadêmica e
profissional afora. No entanto, as circunstâncias que se abateram pelo Brasil e
pelo mundo a partir de março de 2020 me impedem de fazer isso.
2
Até o
final da tarde do dia 13 de março de 2020, uma sexta-feira 13, o mundo vivia a
plenitude de sua normalidade. Minha rotina vivia a pleno vapor da intensidade
de um ano letivo recém-iniciado em um novo ambiente de trabalho, mais saudável,
porém com seus desafios. A turbulência profissional dos tempos de outrora dava
lugar a um ritmo de trabalho mais leve e com a dose necessária de um conforto
conquistado a custa de duras penas. Tinha acabado de concluir meu quarto curso
de pós-graduação e traçava planos para iniciar mais um projeto acadêmico, já
que a vida seguia nos desafiando e nos surpreendendo. Além disso, meus planos
de voltar a escrever crônicas seguiam a todo vapor com outras promessas de
publicação, já que a gaveta e o caderninho de anotações andavam repletos de
escritos inéditos.
Enquanto
isso, eu voltava a religar os laços com minha família carioca, depois da festa
que comemorava o 5.º ano de vida do meu sobrinho. Apesar de ter que conviver
com rendimentos mais modestos, estava em condições de pagar as contas – dentre
os boletos, as prestações mensais da tão sonhada casa própria. A vida social se
dividia entre os amigos, afilhados, parentes queridos, shows, cinema, teatro,
livrarias e o apartamento novo, conquista principal de quase 15 anos de vida a
dois. Em poucas palavras, viver não era um exercício de sofrimento, era um
prazer do qual não se provava há bastante tempo. Mas, todas as nossas certezas,
convicções e rotinas foram por água abaixo depois do décimo-terceiro dia do
terceiro mês de 2020.
Foi
naquele dia que a OMS (Organização Mundial de Saúde) declarou que o planeta
estava diante de uma pandemia causada pelo vírus Sars-Cov-2, vulgo coronavírus,
desconhecido por especialistas em medicina até recentemente. Para nos
protegermos do inimigo invisível, era preciso fazer quarentena, isto é, ficar
dentro de casa em pleno isolamento social para que o vírus não se espalhasse
tanto e a curva de contágios diminuísse. Assim, não só nos protegeríamos da
doença, como teríamos a garantia de que nossos entes e amigos queridos estariam
sãos e salvos na medida do possível. Em menos de cinco dias, minha vida marcada
por uma rotina trepidante ficou reduzida à convivência restrita à proteção dos
55 m² do meu apartamento “perdido na cidade”, com compromissos cancelados e a
suspensão das atividades presenciais na escola onde trabalho por tempo
indeterminado.
O pior da
quarentena foi me obrigar a ser espectador da nossa desgraça em tempo real.
Enquanto o número de infectados pelo coronavírus subia a níveis galopantes,
vitimando milhares de pessoas, assistíamos a tensão política tomar conta do
noticiário com a mesma intensidade dos contágios causados pela pandemia. Fato
evidente e consumado: o Brasil é definitivamente o país mais emocionante de se viver
nesta época, já que temos o vírus e o pandemônio político disputando os
holofotes da imprensa a todo custo. As atividades ligadas aos setores culturais,
como já sabemos, foram profundamente atingidas pela crise sanitária, já que
aglomerações não são permitidas em nome da segurança de artistas, equipe e
público. Por isso, tivemos que nos contentar com nossos ídolos fazendo aparições
em lives caseiras em suas redes
sociais para tentar diminuir as distâncias provocadas pelo distanciamento
social obrigatório. Assim, não precisaríamos ter que nos condenar a ficar
“fazendo longas cartas pra ninguém” em meio a tanta loucura...
3
Eis que,
depois de dois meses de isolamento, Adriana Calcanhotto decidiu surpreender seu
público com uma novidade musical: decidiu voltar a compor e gravou um álbum
inteiro durante a pandemia. Só (2020) reúne nove canções inéditas que
vão muito além da crônica musical de costumes e sentimentos: as faixas foram
compostas, produzidas, gravadas e mixadas (tudo à distância) entre 27 de março
e 8 de maio de 2020, um tempo recorde. É um trabalho que faz uma radiografia e
tanto da vida brasileira antes e durante a pandemia com a sensibilidade que
Adriana já emprestou a trabalhos anteriores como Senhas
(1992) ou Loucura (2015). Ao contrário
do que podia se esperar de um disco surgido em regime de confinamento, Só
é um trabalho bem-humorado, irreverente, mas sem deixar de abordar certos
aspectos difíceis da realidade atual. “Ninguém na Rua”, faixa de abertura,
trata de solidão do isolamento sem deixar de encontrar o remédio para o
sofrimento na memória e no pensamento de quem a gente ama. “Era Só” trata, com
bastante simplicidade, do sentimento que (ainda) é a eterna “razão pra rima”.
Da vida
que ficou lá fora antes de buscarmos proteção em nossas casas durante a
quarentena, ficou a lembrança da vida vivida pelos quatro cantos do Brasil
(“Lembrando da Estrada”) e as recordações de uma vida leve e liberta das
convenções sociais que nos amarram (“Eu Vi Você Sambar”). A farra, antes amaldiçoada
por simplesmente ser libertina e libertadora, hoje é maldita por aqueles que
justificam que o Carnaval de 2020, por exemplo, ajudou a propagar o vírus entre
nós – é importante deixar claro que a OMS declarou que não estávamos em
pandemia dias durante os festejos do Rei Momo.
Na 4.ª
faixa de Só,
“O Que Temos”, Adriana nos lembra de que a solidão nos deu uma nova companheira
para encararmos o mundo que ficou lá fora: as janelas são os nossos ingressos
para a intimidade do outro, para o contato com o nosso semelhante, para o
veículo das nossas revoltas e protestos, já que não podemos fazer passeatas e temos
de nos contentar com notas de repúdio que não levam o Brasil a lugar algum que
seja diferente do fundo do poço. O “Sol Quadrado” que nos ilumina também nos
lembra de tudo de bom e de ruim que semeamos pelo mundo afora sempre irá nos trazer
resultados (positivos ou negativos): “Diz
uma lei da física / Que o que jogas
pro alto volta para o teu telhado / O
mundo dá voltas e agora / até o gado
tá baratinado”. Em meio a um cotidiano no qual nós nos obrigamos a nos
alimentar de notícias (o que seria de nós sem os jornalistas que se aventuram
no front de batalha contra o
coronavírus?), a melancolia e a tristeza acabam se tornando em nossas
companheiras mais frequentes durante a quarentena. “Tive Notícias”, sexta faixa
de Só,
reproduz o sentimento de solidão que nos atormenta em meio de afetos e
desafetos amorosos, que nos privam de beijos e abraços quando mais necessitamos
deles.
Por outro
lado, a quarentena também nos traz outro companheiro bastante desagradável: o
tédio. Mas, Adriana Calcanhotto, versada na boa e velha Tropicália, decidiu
brincar com isso e achou “melhor fazer uma canção”. Decidiu devorar o funk carioca, várias de suas expressões
de duplo sentido e conotação sexual explícita para compor “Bunda Lê Lê”. O
título chega até a nos remeter a algum sucesso de Latino ou Mr. Catra, mas é,
segundo Adriana, o “Funk da Quarentena” que nos pergunta repetidamente: “O que que faz na quarentena?”. A
resposta é bem simples: ler, estudar, ir à luta por um mundo melhor diante de
tanta ignorância e falta de educação que existe no Brasil de hoje. Alguns
ouvidos menos sensíveis e mais elitistas (arrogantes?) torceram o nariz e
fizeram pouco de Adrix. Outros, incluindo este reles blogueiro de fim de
semana, simplesmente adoraram.
Como
encerramento para Só,
Adriana Calcanhotto escolheu a canção mais inspirada de sua safra do
isolamento. “Corre o Munda” é uma alusão direta ao Rio Mondego, que banha a
cidade portuguesa de Coimbra, onde a artista passou a residir durante parte do
ano por causa de suas aulas na renomada universidade (os romanos chamavam o rio
de “Munda”, daí o termo). Não é simplesmente uma declaração de amor por terras
portuguesas, é uma canção que trata da esperança que ainda há dentro de cada um
de nós de retomar o ritmo da vida que ficou lá fora, de lançar-se ao mundo, de
navegar, de viver por meio dos versos e sons de uma “compositora sem eira nem beira”
em uma viagem cuja embarcação é a palavra cantada.
A
quarentena foi, para algumas pessoas, sinônimo de prostração, revolta,
depressão com alguns picos de produtividade e toneladas de teletrabalho e
desespero. Se o nosso isolamento vai deixar algum legado para os outros é algo
difícil de sabermos, mas o distanciamento de Adriana Calcanhotto nos oferta uma
obra a ser apreciada futuramente com a vontade de saber mais a respeito de uma
guerra travada contra inimigos invisíveis (o vírus, o tédio, o desespero, a
angústia, a revolta) diante dos olhos e outros algozes bem visíveis diante dos
seres humanos de bom coração (esses sequer merecem ser mencionados pelo nome).
Viu, Adriana?
Por culpa sua e desse seu disco ótimo, que foi dedicado à memória de Moraes
Moreira, estou até superando o meu bloqueio criativo e estou voltando às minhas
crônicas. Devo mais uma a ti!
Uauuuu! Volta estupenda! Crônica especialmente divina!😘👏🏾👏🏾👏🏾👏🏾
ResponderExcluir