O
INVASOR DA DESESPERANÇA
Algumas razões para elegermos Guilherme Boulos para
a Prefeitura de São Paulo
“E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho
Feliz de cidade
Aprende de pressa a chamar-te
De realidade
Porque és o avesso
Do avesso, do avesso, do
avesso…”
(Caetano Veloso, 1978)
Todo
ano “par” reserva emoções intensas para todos os que se interessam por política
no Brasil. Eu me incluo nesse grupo com toda a tranquilidade, já que escolhi
São Paulo (maior colégio eleitoral do país) como meu lar há mais de uma década
e os pleitos daqui sempre reservam discussões acaloradíssimas. Com a pandemia
do coronavírus, as eleições municipais de 2020 foram adiadas em mais de um mês,
a maioria dos debates políticos foram cancelados e as campanhas políticas
tiveram de mobilizar os meios virtuais para evitar aglomerações.
Confesso que minhas esperanças por uma
renovação em matéria de política foram abaladas quando a cidade de São Paulo
trocou um democrata de centro-esquerda (Fernando Haddad) por um lobista que se
dizia trabalhador (João Doria) em 2016. Foram aniquiladas de vez quando o
Brasil permitiu que um projeto mal-acabado de ditador (a versão brasileira de
Donald Trump) subisse a rampa do Palácio do Planalto em 2018. A esperança de
que, um dia, tivéssemos políticos dispostos a governar junto com o povo deu
lugar para um pessimismo com tintas depressivas, já que a maioria das opções
que nos sobraram era uma galeria de tipos grotescos e reacionários, expondo o
que existe de pior no pensamento conservador. No entanto, parte de meu
sentimento desesperançoso mudou quando soube que Guilherme Boulos, ex-líder do
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), se aliou a Luiza Erundina (Deputada
Federal e ex-Prefeita de São Paulo) para uma chapa com o intuito de concorrer
às eleições para a Prefeitura da capital paulista pelo PSOL em 2020.
Guilherme Boulos ao lado de Luiza Erundina em 13/11/2020 - Foto: Tatiana Santiago (G1) |
Professor de Filosofia com experiência em escola
pública, militante da causa de uma habitação digna para os mais pobres, único dos candidatos que
mora em um bairro periférico de São Paulo (Campo Limpo) e uma das figuras mais
jovens da política brasileira, Guilherme Boulos sempre foi criticado por seus
opositores, que insistiam em lhe impor a pecha de “invasor” de propriedades
privadas, além de outros estigmas que ele comprovou não serem verdadeiros. Com apenas
17 segundos de propaganda eleitoral, não tinha as vantagens de seus
concorrentes: fez uso de uma campanha intensa pela Internet por meio de memes,
postagens irreverentes e bem-humoradas nas redes sociais, sem apelar para o
grotesco que sempre deu o tom de alguns de seus concorrentes. Buscou o apoio e
a experiência de Erundina, primeira Prefeita que a Pauliceia elegeu, para expor
suas propostas de governo. Foi aguerrido nos debates políticos, enfrentando jornalistas
nada simpáticos à sua presença, seus adversários e as fake news.
Além disso, o companheiro de Erundina teve a
coragem e a enorme ousadia de iniciar e encerrar sua campanha ao primeiro turno
das eleições municipais com duas lives
de quase 24 horas que mostrou o cotidiano do homem por trás do candidato desde
o início da manhã até o fim de um dia de trabalho, mostrando o corpo-a-corpo
com os eleitores e revelando alguns momentos de sua intimidade. O resultado
dessas estratégias de campanha foi uma arrancada surpreendente de Boulos para o
segundo lugar nas intenções de voto, aterrorizando seus adversários e
intrigando os analistas políticos. Tudo isso com muita leveza, irreverência e
inteligência típicas do povo brasileiro.
Aliás, é preciso deixar claro que o brasileiro,
em linhas gerais, sempre foi bem-humorado e irreverente. Os memes que se produzem são uma prova
claríssima disso. Em matéria de política, então, a irreverência do eleitor poderia
níveis inacreditáveis. Quando o lendário Macaco Tião se revelou como uma
revelação e chegou ao segundo lugar na disputa para a Prefeitura do Rio de
Janeiro, eu tinha sete anos de idade. Eu estava com oito quando vi Enéas
Carneiro revolucionar o Horário Político, chatíssimo por natureza, proferir “Meu
nome é Enéas!” para compensar o seu espaço mínimo de programação, que não
chegava aos cinco segundos.
Por outro lado, os artífices da
política brasileira sempre fizeram dela um espaço sisudo e nem um pouco
irreverente. Debates políticos, apesar de alguns episódios hilários, sempre foram
o palco principal dos temperamentos odiosos dos eleitos por meio do voto direto.
Mais do que isso, há ainda algo bem pior: as relações frágeis da nossa
democracia recém-nascida evidenciavam o caráter mais obscuro de nossa gente,
chegada aos níveis mais diversos de corrupção. Aos onze anos de idade, assisti a
deposição do primeiro Presidente da Nova República por meio de um golpe
midiático espetacular que se travestiu de caras pintadas nas ruas. Entre a
adolescência e o início da minha vida adulta, vi o Presidente que criou o Plano
Real governar por dois mandatos presidenciais apesar dos escândalos comprovados
da compra da emenda de sua reeleição no Congresso Nacional.
Aos dezessete anos, no final da adolescência,
votei pela primeira vez para Presidente da República, com a esperança de que
iria eleger um ex-metalúrgico para a cadeira mais ilustre do Brasil, fato que
ocorreu apenas 4 anos depois. Por um brevíssimo tempo, achei que a política
seria um sinônimo de esperança para, enfim, sanarmos as diferenças sociais que
sempre separam ricos de pobres, da classe média de indivíduos miseráveis. Fui
enganado: os primeiros escândalos de corrupção envolvendo o Partido dos
Trabalhadores não só me deixou frustrado em relação aos meus votos, como também
me afastou da política e do direito ao voto por mais de dez anos – sempre aproveitei
o fato de ter me mudado para outro Estado para justificar minha ausência.
Em 2014, na iminência da reeleição de
Dilma Rousseff – primeira mulher eleita Presidenta da República Federativa do
Brasil –, decidi exercer meu direito ao voto e voltei ao Rio de Janeiro para
votar em Dilma. Sempre achei que sua plataforma política necessitava de
revisões, de posicionamentos mais críticos, de menos concessões aos barões da
política tradicional, porém há um fato inegável: é sempre mais confortável fazer
oposição a um governo alinhado a ideais democráticos do que com tecnocratas
neoliberais e projetos de ditadores obcecados em cortar gastos públicos e fazer
um Estado Mínimo para a população e um Estado Máximo para os altos escalões do
governo e suas famílias parasitárias.
Mesmo se o candidato do PSOL para a Prefeitura
de São Paulo não atingir seu objetivo principal, é indiscutível que sua
campanha fez história: renegou o ódio e a arrogância típicos da maioria dos
políticos tradicionais, mobilizou um número enorme de simpatizantes via Internet e tentou fazer política com irreverência
e olho-no-olho. Se Guilherme Boulos invadiu alguma coisa durante a campanha
eleitoral foi a desesperança do paulistano, que está exausto de ver sua cidade
entregue à sujeira. às enchentes, às negociatas com as máfias dos transportes,
ao descaso com os servidores públicos municipais, dentre tantas mazelas. Seu projeto
de governo talvez não seja o mais perfeito para a cidade, mas, para
aperfeiçoá-lo, Boulos se mostra altamente disposto a ouvir as vozes de quem
acreditou nele: o povo.
Por isso, espero que as urnas ouçam a voz do
povo. Guilherme Boulos está plenamente disposto a construir uma cidade melhor
para a próxima década. Ao lado de Luiza Erundina e ao lado do povo, fazendo a
política como ela realmente deve ser feita: para todos e não para os mais
abastados. Talvez este seja o caminho para um “sonho feliz de cidade”, do jeito
que Caetano cantou em uma de suas canções mais emblemáticas.
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