31 de dezembro de 2020

TROVA # 157

 

O CANSAÇO DA ESPERANÇA

Como o ano de 2020 cansou com algumas de nossas esperanças?

 


Esperança cansa
Cansa de esperar
Já não tô podendo mais
Minha paciência é a razão
 

Minha fúria odiosa já tá na agulha
Minha fúria odiosa já tá na agulha
E um dia poderosa
Poderá dizer que acha tudo muito pouco
 

Fugir quando estiver desesperada, abandonada
E de repente voltar
Cansada esperada
Desapropriada
Fúria amansada descansa
 

E de repente, volta
Cansada esperada
Desapropriada
Fúria amansada descansa

(Karina Buhr, 2010)

 



Se você chegou até aqui, é porque sobreviveu junto comigo e junto de tantos outros que fizeram com que as coisas valessem a pena. Escrevo este texto faltando menos de 24 horas para o apagar das luzes do ano da (des)graça de 2020 na tentativa de encontrar uma lógica coerente ou um pouco de esperança para o próximo ciclo de 365 dias que está a caminho. A dificuldade é imensa, já que vivemos anos bastante difíceis: uma pandemia que ceifou a vida de quase 200 mil brasileiros e contaminou (oficialmente) mais de 7 milhões e meio de pessoas; uma crise política permanente aliada a retrocessos econômicos, minando quaisquer possibilidades de avanços sociais;  os órgãos de imprensa vivem sob ataque constante do Governo Federal enquanto milhões retornam ao mapa da fome.

Sempre haverá um ou outro que pode me acusar de pessimista, ou de ser movido apenas por uma “fúria odiosa”, algo totalmente compreensível em tempos de tamanha intolerância. Porém, aproveito para me defender citando uma frase famosa do escritor português José Saramago que se encaixa com perfeição no ano de 2020: “Não sou pessimista, o mundo é que é péssimo!”. Os três exemplos que citei já são suficientes para derrubar a esperança de qualquer um para dar voz ao cansaço.

Mas, apesar de estar exausto de “tanto horror e iniquidade”, como nos disse Chico Buarque, a empatia que ainda habita o meu ser ainda me faz ligar o noticiário para assistir os acontecimentos do Brasil e do mundo durante o período de festas. O resultado é ainda mais desastroso: vejo pessoas curtindo a vida lá fora como se não houvesse um vírus que já matou milhares de pessoas e que tem levado os sistemas de saúde ao colapso – festas clandestinas, reuniões familiares com dezenas de pessoas, hotéis funcionando quase normalmente, máscaras faciais colocadas no queixo ou em lugar nenhum, um desapreço total pelos médicos e cientistas, que nos advertiram dos riscos de contaminação. Para os poucos que ainda estão em confinamento, como eu, ver essa turba toda se divertindo pela TV e pelas redes sociais (ambientes tóxicos por natureza!) é uma ofensa, um desrespeito, um deboche explícito: com medo de me infectar, estou em casa há mais de 9 meses e posso contar nos dedos das mãos quantas vezes eu saí de casa para ir ao trabalho, ao supermercado, ao correio ou ate a farmácia.

 


Deixando as festividades um pouco de lado, vamos fazer um breve retrospecto de alguns fatos e acontecimentos que sacudiram o ano? Enumero alguns deles...

2020 foi mais um ano no qual o racismo mostrou novamente a sua face mais perversa ao Brasil e ao resto do mundo. Para ficarmos apenas em nosso território, aproveito para retomar dois dados alarmantes: Primeiro: MAIS DE 2.000 CRIANÇAS E ADOLESCENTES FORAM MORTOS POR POLICIAIS ENTRE 2017 E 2019; Segundo: ATÉ O INÍCIO DE DEZEMBRO DE 2020, 12 CRIANÇAS E ADOLESCENTES FORAM ASSASSINADOS PELA POLÍCIA APENAS NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO! Com a pandemia e com a maior quantidade de pessoas em casa, tivemos de prestar mais atenção a casos hediondos de vidas ceifadas pela irresponsabilidade de quem deveria proteger a sociedade. Fato ainda mais estarrecedor: a maioria das vítimas era negra. Em um texto publicado na Folha de S. Paulo de 6 de dezembro de 2020, afirmou Thiago Amparo, advogado e professor de Direito Internacional: “Balas não são perdidas, porque sempre acham os mesmos corpos negros para os quais foram disparadas.”

Diante do massacre praticado contra negros e pobres, eu me pergunto que tipo de “Boas Festas” tiveram os familiares das primas Emilly e Rebeca, mortas por uma “bala perdida” na frente de casa? Que tipo de “Boas Festas” tiveram os familiares de João Pedro Pinto, de Leônidas Oliveira e de tantos outros mortos pela irresponsabilidade do Estado enquanto famílias brancas puderam comemorar o final de 2020 com toda a irresponsabilidade que eles julgavam ter direito?

Outra palavra que ouvimos aos montes durante o ano da (des)graça de 2020 foi feminicídio. Graças ao assassinato brutal da juíza Viviane Arronenzi pelo marido na Véspera de Natal, os noticiários aproveitaram a ocasião para noticiar outros casos cruéis de mulheres que tiveram suas vidas interrompidas por seus respectivos (ex-)maridos, namorados e companheiros. Com todo o respeito à memória e às filhas da Juíza Viviane, eu me pergunto: precisou que morresse uma mulher branca de forma perversa para que a opinião pública voltasse seu olhar para um problema que atinge mulheres negras aos montes?

 



Nesta época, na qual celebramos o nascimento de Jesus Cristo, deveríamos buscar a reflexão, o amor pelo próximo, a tal da empatia que muitos citam e raramente praticam. Em um texto escrito no Natal de 2014, Guilherme Boulos escreveu algo que ainda se encaixa no Brasil de hoje: “Jesus dedicou sua vida à igualdade, à justiça e à paz entre os povos. Se reaparecesse (...) no Brasil, ficaria espantado com o que dizem e fazem muitos dos cristãos. Seria achincalhado com palavras inomináveis nas seções de comentários da Internet. Seria chamado de bolivariano na Avenida Paulista. Certa comentarista de telejornal o mandaria levar para casa a mulher adúltera que ele salvou do apedrejamento. E alguém, de dentro de algum carro no Leblon, gritaria: ‘Vai pra Cuba, Jesus!’.” Cristãos da boca para fora existem aos montes, levar os ensinamentos bíblicos a sério é algo não permitido pela hipocrisia de cada um. É muito mais cômodo agir como Pôncio Pilatos e lavar as mãos diante da barbárie que se pratica diariamente.

Ficar em isolamento dentro de casa seria um exemplo de olhar para o seu semelhante para que ele não entrasse para as estatísticas que os veículos de imprensa noticiam às 8 da noite com o objetivo de nos informar quantos foram infectados e quantos morreram em 24 horas. Abdicar de festas em família com mais de 10 pessoas seria um ato de sensatez. Dizer não para o convite do amiguinho e ir para qualquer parte seria outro exemplo de sanidade mental. Defender a vacinação para todos os brasileiros o quanto antes enquanto outros países do mundo já estão se vacinando seria ter princípios éticos bem consolidados dentro de si. No entanto, como se diz por aí, miséria pouca é bobagem: bom senso não é algo que faz parte do repertório de todo mundo.

 


Confesso: minha esperança está bem cansada em relação ao que virá. Reitero: cansada, mas (ainda) não está morta! Por isso, procurei ouvir a voz visionária dos artistas para encontrar forças e seguir em frente diante das tragédias. Muitos me ofereceram o conforto por meio de sua arte e me ajudaram a pensar o contexto atual com mais tranquilidade. Por isso, lembro-me de Patti Smith, uma das pessoas que mais me inspiram nos dias de hoje, que estou bem próximo dos 40 anos de idade: “O povo tem o poder / de consertar o trabalho dos tolos”. As linhas que eu escrevo talvez não tragam o conserto para muita coisa, mas me auxiliam a renovar as esperanças para o futuro. Afinal, o que se cansa pode se renovar. Aquilo já morreu, morto está e vai ficar. Sigamos em frente, com ou sem o cansaço para combater a barbárie...



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