BREGA,
CHIQUE e FUNDAMENTAL
O isolamento social se tornou menos chato graças
à reprise de Brega & Chique no Canal
Viva...
Desde que a
pandemia nos obrigou a ficar em casa por tempo indeterminado, passamos a
trabalhar em modo remoto, deixamos de sair para nos divertir e viver os outros
prazeres da vida lá fora. Desde que a vida dentro do confinamento se tornou uma
realidade sem glamour nenhum e com um
tédio persistente, tive que apelar para uma companheira que andava meio sumida
por uns tempos: a TV.
Uma opção
mais saudável para aguentar a nova rotina à qual fomos submetidos desde meados
de março foi assistir às reprises de novelas antigas que o Canal Viva tem
levado ao ar há 10 anos, para alegria deste velho noveleiro que vos escreve. Finalmente
tinha encontrado uma alternativa mais saudável para o tédio e o desespero ao
alternar a atenção dos telespectadores daqui de casa entre o Viva e a Globo
News e dar conta da insanidade que impera do lado de fora da nossa casa.
Afinal de
contas, é preciso deixar claro que minha infância não foi passada lendo livros
como eu gostaria, muito menos brincando na rua com outras crianças da minha
idade (sempre fui um antissocial de carteirinha). Eu passei “a aurora da minha
vida” na frente da TV assistindo os infantis da época e prestando atenção nas
novelas da Rede Globo. Passei anos da minha vida adulta renegando os folhetins
da infância até compreender depois de muito tempo que eu não seria quem eu sou
hoje se eu não tivesse assistido clássicos da nossa dramaturgia na época como Vale Tudo, Bebê a Bordo, Que Rei Sou Eu?,
Tieta, Rainha da Sucata, Lua Cheia
de Amor, Vamp, Deus nos Acuda, Quatro por Quatro, as segundas versões de Mulheres de Areia e A Viagem,
além da clássica A Próxima Vítima (provavelmente a última novela que eu assisti
na íntegra durante a época em que foi ao ar).
As novelas não apenas fazem parte da cultura popular do brasileiro, como também é a porta de entrada de muitos deles para conhecermos a obra de gigantes da Literatura: jamais teria tido acesso à obra de Jorge Amado, de Nelson Rodrigues ou de Eça de Queiroz se não fosse o trabalho da teledramaturgia brasileira. Eis um fato do qual nem eu, nem você que me lê podemos fugir e, sim, devemos encará-lo de frente, sem vergonha nenhuma e com uma bela dose de orgulho.
*
Um dos
maiores magos do gênero telenovela foi Cassiano Gabus Mendes, autor de
clássicos como Beto Rockfeller
(1968), Anjo Mau (1976), Marrom Glacê (1979), Elas por Elas (1982), Ti Ti Ti (1985), Que Rei Sou Eu? (1989) dentre outros. Uma de suas marcas
registradas era a sátira de costumes: o autor fazia questão de criticar o que
existe de mais mesquinho e superficial na nossa sociedade, expondo os
personagens ao ridículo por meio de situações fúteis e até preconceituosas.
Suas novelas atraíam diversas faixas do público, arrancando risadas de crianças
e adultos.
A
oportunidade de conhecer melhor o universo de Cassiano se deu graças ao Canal Viva,
que começou a reprisar Brega &
Chique (1987) desde fevereiro de 2020, para a alegria dos saudosos
das novelas da década de 1980 – eu só tinha seis anos na época em que a novela
foi ao ar entre abril e novembro de 1987, por isso eu só me lembro de uma mísera
cena. A trama principal da novela (exibida às 7h da noite na antiga programação
da Rede Globo) é bastante simples para os telespectadores acostumados com as
novelas de hoje: Herbert Alvaray (Jorge Dória), um homem rico é casado com Rafaela
(Marília Pêra) uma dondoca e pai de três filhos adultos, porém mantém uma
segunda família em um bairro de subúrbio com uma segunda mulher, Rosemere
(Glória Menezes), uma mulher doce e humilde, com quem Herbert teve uma filha.
Prestes a
falir, Herbert decide simular a própria morte (com o apoio de seu advogado,
fiel escudeiro e confidente) para fugir de seus credores e foge para a Suíça,
deixando a sua família na miséria e uma herança de 1 milhão de dólares para a
amante, que fica rica da noite para o dia. Obrigada a se reinventar, sua
primeira esposa decide alugar uma casa na mesma vila no bairro pobre onde a
amante do marido vive. Sem saber do homem que partilhavam no passado, as duas
não só passam a se conhecer, como também se tornam em grandes amigas.
Somemos a
esse caldo, a presença constante de Zilda (Nívea Maria) – amiga próxima família
e também amante de Herbert – e de Montenegro (Marco Nanini), o fiel advogado,
apaixonado por Rafaela Alvaray, primeira esposa de seu chefe. O quadro de
personagens se completa com os demais moradores da vila onde as duas famílias moravam
e mais um elemento surpresa: Cláudio Serra (Raul Cortez), a identidade falsa de
Herbert Alvaray, refeito de uma cirurgia plástica meses depois de sua fuga,
pronto para rever suas famílias e suas amantes, já que está irreconhecível para
aqueles que o conheciam como o falecido marido de Rafaela.
A trama, bem típica dos folhetins que a Globo fazia nos anos 1980 e às vezes tenta refazer por meio de remakes que quase sempre deixam a desejar, se sustentou perante a audiência da época graças à direção do esfuziante Jorge Fernando e de um elenco espetacular encabeçado pela saudosa Marília Pêra, Glória Menezes, Marco Nanini, Jorge Dória, Raul Cortez, Nívea Maria, Marcos Paulo (Luís Paulo) e Dennis Carvalho (Baltazar), além da participação de veteranos e jovens talentos da época como Cássia Kiss, Patrícia Pillar, Cássio Gabus Mendes, Cristina Mullins, Célia Biar, Neuza Amaral, Tato Gabus Mendes, Patrícia Travassos, Jayme Periard e por aí vai. A produção marcava o retorno de Marília às novelas depois de mais de uma década afastada de produções desse tipo. O sucesso de Brega & Chique foi tão retumbante na época de sua exibição, em 1987, que chegou a bater os níveis de audiência de O Outro, novela da oito de Aguinaldo Silva que ia ao ar na mesma época.
Assistir
as trapalhadas e peripécias de Rafaela Alvaray (minha personagem preferida da
novela e que tirou várias gargalhadas minhas em dias nos quais o noticiário
andava caudaloso) não foi apenas um verdadeiro antídoto para os horrores que
ficaram do lado de fora da porta da nossa casa, como também me deu uma pontilha
de orgulho de ter nascido no mesmo país que Marília Pêra, uma das artistas mais
brilhantes que o mundo já conheceu. Sua interpretação para a perua que deixa de
ser rica para se transformar em uma vendedora de marmitas é uma das melhores
atuações já vistas na história da televisão brasileira. A Rosemere de Glória
Menezes, pobretona que se transforma em uma noveau
riche em estalar de dedos, é uma interpretação sutil e de uma inteligência que
demonstra o porquê da esposa de Tarcísio Meira ser uma das maiores damas de
nossa teledramaturgia. A personagem Zilda foge dos estereótipos das mocinhas ingênuas
e de bom caráter que Nívea Maria sempre interpretou até então. Jorge Dória e
Raul Cortez, respectivamente, fizeram de Herbert Alvaray / Cláudio Serra um
vilão marcado por um mau-caratismo sedutor, levemente caricato e infinitamente
ordinário, para deleite de suas amadas e do público. E, por fim, o pacato e apaixonado
Alberico Montenegro é um exemplo extraordinário do quanto Marco Nanini era
hilário antes do surgimento da TV Pirata
e muito antes do remake de A Grande
Família – a dupla que ele formava com Marília rendia as melhores cenas de Brega & Chique.
Dois
elementos da novela de Cassiano Gabus Mendes merecem destaque: as imagens da
abertura e os discos que compunham a trilha sonora nacional e internacional de Brega & Chique. A entrada dos créditos
do elenco, autores e direção aparecia em meio a imagens de mulheres
estonteantes (candidatas de Miss Brasil
entre elas) desfilando seus looks duvidosos e elegantes disputando o mesmo
homem para, no fim, revelar a nudez milenar do ator e modelo fotográfico
Vinícius Manne ao som de “Pelado”, do Ultraje a Rigor (quem se lembra do
refrão, hoje clássico: “Pelado pelado / nu com a mão no bolso”?) – por causa
disso, a novela chegou a ser ter problemas com a Censura por revelar aquilo que
há por debaixo das roupas que vestimos.
Já os
discos que fizeram a trilha sonora da novela continham o que havia de melhor na
música brasileira e internacional no ano de 1987: uma gravação inédita de
Caetano Veloso na época (“Preciso Aprender a Só Ser”), além de sucessos de
Fábio Jr., Erasmo Carlos, Leo Gandelman, Beto Guedes, Raul Seixas e da dupla
Rita Lee & Roberto de Carvalho, para não citar outros. A versão
internacional trazia uma versão de Boy George para “Everything I Own”, do
Bread, além de sucessos de Genesis, Whitesnake, George Michael, Simply Red,
Jimmy Cliff e Janet Jackson etc. A trilha estrangeira de Brega & Chique
deve ter sido uma das trilhas de novela que eu mais devo ter ouvido na vida, já
que meus pais tinham uma versão dela em fita cassete, cuja capa mostrava alguns
dos melhores atributos de Vinícius Manne.
Entre os
meses de março e setembro de 2020, Brega &
Chique foi minha companheira
inseparável das tardes regadas a um bom café ou das madrugadas (quando não
conseguia assistir o capítulo da tarde, assistia à reprise que passava às 0h45).
As comédias não nos ajudam a esquecer dos males de uma pandemia, mas certamente
nos ajudam na medida em que nos trazem diversão e doses de ironia para nos
fazer pensar e rir do quão ridículos nós (ainda) somos. Afinal de contas, é
preciso rir em meio às lágrimas que temos vertido ultimamente...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe seu comentário!