A GLORIFICAÇÃO DA IGNORÂNCIA
Dois episódios de intolerância e burrice que podem levar a democracia para o colapso
“The
lunatic is in my head
The
lunatic is in my head
You
raise the blade,
you
make the change
You
re-arrange me ‘til I’m sane
You
lock the door
and
throw away the key
There’s
someone in my head
but
it’s not me”
(Roger
Waters, 1973)
Todos nós sabíamos
que os primeiros dias de 2021 não seriam nada fáceis para o Brasil, tampouco
para o resto do mundo. Porém, dois eventos ocorridos na primeira quinzena de
janeiro demonstram que, tal qual nos diz o ditado, “miséria pouca é bobagem”.
Nos
EUA, Donald Trump entrou no ano novo ainda sem ter admitido que a derrota por
Joe Biden nas eleições presidenciais de 2020. O mundo inteiro sabia que o
demônio de laquê faria mais uma investida contra as instituições
norte-americanas para garantir mais quatro anos dentro da Casa Branca. A
transferência de poder, longe de ser harmônica e republicana, tem sido uma
troca de acusações, deixando a opinião pública em alerta por se tratar do país
mais poderoso do planeta.
No
dia 6 de janeiro de 2021, o mundo tomou conhecimento da cartada de Trump para
manter o poder. Diretamente de Washington, incitou uma horda de supremacistas
brancos fanáticos para marchar até o prédio do Capitólio e impedir os membros
do Congresso Nacional de diplomar Biden como o 46.º Presidente dos EUA. Os
invasores invadiram um prédio público com facilidade, promovendo arruaças,
quebra-quebras, pondo a vida de centenas de congressistas em risco. Cinco
pessoas foram mortas em um dos eventos mais vergonhosos da história da
democracia, com direito a transmissão mundial e em tempo real.
Para
estas retinas um tanto fatigadas, a cena mais estarrecedora de 6 de janeiro foi
revelada no dia seguinte. Um vídeo divulgado por Donald Trump Jr., filho mais
velho do Presidente, mostrava imagens da comitiva presidencial acompanhando a
insurreição do Capitólio por meio de imagens de câmeras de segurança
diretamente dos jardins da Casa Branca. Enquanto a barbárie avançava ferozmente,
acuando os congressistas norte-americanos e demais presentes, os autofalantes
tocavam “Gloria”, um sucesso de Laura Branigan que tinha feito enorme sucesso
no início dos anos 1980.
Ao mesmo
tempo em que correligionários trumpistas dançavam e urravam de alegria e
excitação, ouviam-se os versos “Gloria,
/ don't you think you're fallin'? / If everybody wants you, / why isn't anybody callin'?”
[Glória, / você ainda não entendeu que está caindo? / Se todo mundo lhe quer /
por que não há ninguém chamando?”]. Por uma ironia do destino, os trumpistas bailavam
tinha a trilha sonora perfeita para demonstrar que não se importavam com o fato
de que mais de 80 milhões de pessoas e de que centenas de delegados se
recusaram a prosseguir com o projeto de governo catastrófico de Donald Trump
por mais quatro anos. O escárnio e o deboche daqueles indivíduos me deixaram
profundamente revoltado por não haver nenhuma demonstração de empatia ou apreço
pelas instituições.
Como
consequência do horror que se abateu pelo Capitólio, um pedido de impeachment
contra Donald Trump foi impetrado pela oposição do Partido Democrata,
julgando-o culpado pela invasão do Congresso dos Estados Unidos. Nenhum
político estadunidense conseguiu a marca histórica de ter sido condenado duas
vezes por pedidos de impedimento (da primeira vez ele foi absolvido pelo Senado
dos EUA). A
ignorância trumpista, depois de tantos males feitos em 4 anos, parece estar
chegando ao seu apogeu.
Logo
após os States vivenciarem os
espasmos das primeiras vertigens de sua democracia, o nosso processo
democrático apresentava novos sinais de que está adentrando em falência
múltipla. Enquanto o número de doentes por COVID-19 aumentava assustadoramente devido
às reuniões familiares e aglomerações das festas de fim de ano, o Indigno
Presidente da República Federativa do Brasil se dizia preocupado com o futuro
da nação ao demonstrar pesar com a importância do voto impresso e de que o
ambiente político-social brasileira ficaria pior do que o norte-americano se
ele não for reeleito em 2022. Durante os primeiros dias do ano, o Ministro da
Saúde (um militar “especialista” em logística) destilava a sua arrogância e o
seu desconhecimento da complexidade do Sistema Único de Saúde (SUS), deixando a
imprensa e a população em estado de perplexidade diante de seus
pronunciamentos. O conhecimento científico passou a contar com o deboche do
Presidente e de seus asseclas.
Porém,
a tragédia anunciada há tempos por epidemiologistas e outros especialistas em
pandemias, controles epidêmicos e cargas virais se concretizou no raiar do dia
14 de janeiro de 2021. O sistema de saúde de Manaus, capital do Amazonas,
atingiu o nível máximo de internações, esgotou todo o seu estoque de oxigênio e
entrou em colapso. Enquanto doentes morriam por asfixia, profissionais de saúde
e familiares se desesperavam para tentar salvar quem agonizava nos leitos
hospitalares. Durante a espera de uma vacina para nos protegermos do
coronavírus, assistimos milhares de brasileiros mortos por dia sem poder fazer
quase nada. A ignorância bolsonarista, depois de tantos males feitos em 2 anos,
parece estar chegando ao seu ápice.
*
A
Era da Mediocridade em escala mundial foi inaugurada por Trump em 2016 e teve
nas chamadas fake news o seu
combustível para tomar a democracia de assalto. Dois anos depois, o Brasil
elegeu um dos políticos mais repugnantes da história para o posto político mais
alto da República graças a um misto de desinformação, desumanidade e desserviço.
O espaço público tem convivido com o que há de mais abominável em matéria de
seres humanos ultimamente, deixando todo o ódio de classe, de raça e de gênero
aniquilar o que ainda resta de direitos humanos por estas bandas.
Ao contrário
do que acontece na letra de “Brain Damage”, uma das canções mais emblemáticas
do repertório do Pink Floyd, o louco que estava na minha cabeça não era eu. De
uns tempos para cá, ele deixou de habitar os meus pesadelos para apresentar a intolerância
com o intuito de ofuscar a sabedoria e a diversidade, causando uma histeria
coletiva de ódio e de ignorância. Graças às correntes toscas de redes sociais e
de aplicativos de mensagens, passei a ter um respeito maior pela figura pública
de Roger Waters, ex-baixista e líder da lendária banda inglesa, pois poucos
escreveram tão bem sobre ódio e intolerância em matéria de canção. Em tempos de
mediocridade e ignorância, é fundamental louvamos quem preza por liberdade e democracia
e Waters sempre fez questão de denunciar fascistas e autoritários para seus
ouvintes.
Por fim,
nunca é demais dizer que a chamada “Era da Mediocridade” exige um preço alto
daqueles que ainda cultivam a inteligência. Mais do que exaltada, a ignorância
é glorificada por meio de autofalantes e pelos brados dos idiotas e tem matado
milhares de brasileiros por uma peste que não tem previsão de nos abandonar tão
cedo. Mas, enquanto estivermos aqui, estaremos respirando, cantando,
escrevendo, protestando e xingando contra todo e qualquer autoritarismo.
Afinal, os “esquerdistas” também amam. Às vezes, até demais...
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