16 de fevereiro de 2021

TROVA # 162

 

MEMÓRIAS DE FEVEREIRO


“Sai do lixo a nobreza

Euforia que consome

Se ficar o rato pega

Se cair urubu come

 

Vibra meu povo

Embala o corpo

A loucura é geral

Larguem minha fantasia

Que agonia... Deixem-me

Mostrar meu carnaval

 

Firme... Belo perfil!

Alegria e manifestação

Eis a Beija-flor tão linda

Derramando na avenida

Frutos de uma imaginação”

(GRES Beija-Flor, 1989)



Brasil, meu nego

Deixa eu te contar

A história que a história não conta

O avesso do mesmo lugar

Na luta é que a gente se encontra

 

Brasil, meu dengo

A Mangueira chegou

Com versos que o livro apagou

Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento

Tem sangue retinto pisado

Atrás do herói emoldurado

Mulheres, tamoios, mulatos

Eu quero um país que não está no retrato

(GRES Estação Primeira de Mangueira, 2019)



            Por conta de uma pandemia que já ceifou quase 240 mil vidas em nosso país, assisti algo inédito em 40 anos de passagem por este mundo: mês de fevereiro sem cores, sem alegria, sem irreverência, sem batucada nas ruas. Para não deixar o período de Momo passar em branco, a passarela do samba, localizada na Avenida Marquês de Sapucaí, ficou iluminada com as cores das agremiações que levam alegria para tantas pessoas do período entre a sexta-feira de carnaval e a quarta-feira de cinzas. Mês de fevereiro sem carnaval é como mês de junho sem Festa Junina ou mês de dezembro sem Papai Noel: não tem a menor graça!

            Apesar das restrições, muitos resolveram aproveitar a oportunidade para vestir uma fantasia, resgatar uma maquiagem mais colorida ou uma peruca velha e ficar curtindo os festejos de casa mesmo. A TV Globo aproveitou o fato de que há mais pessoas dentro de seus lares para reprisar desfiles marcantes das escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo, para os saudosos de antigos carnavais. Neste ano, aproveitei mais uma vez a oportunidade para ficar recolhidos com meus pensamentos, manias e obsessões para tentar colocar a cabeça no lugar. Em ocasiões como esta, as memórias acabam resgatando momentos nos quais a vida ainda pode valer a pena.

            Como bom carioca que sou – fui nascido e criado com a vivência de sambas-enredo e escolas de samba dentro de casa –, sempre mantive na memória os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro. Eu tinha acabado de completar 8 anos de idade quando Joãosinho Trinta, na época carnavalesco da Beija-Flor de Nilópolis, tentou levar um Cristo mendigo para a passarela do samba para compor o enredo “Ratos e Urubus, larguem a minha fantasia!” em fevereiro de 1989. Estarrecida com a ousadia de Joãosinho (onde já se viu contar uma parte de nossa história utilizando um Jesus em farrapos?), a Igreja Católica armou uma enorme confusão, censurou o desfile e o carnavalesco quase foi parar na cadeira por conta da ousadia de sua arte.

Não me lembro de quase nada daquele desfile, mas o que vi e mal entendi daquela passagem da Beija-Flor pela Avenida Marquês de Sapucaí está disponível nos arquivos das emissoras de televisão e no YouTube para a nossa imensa alegria. Censurado em um Brasil que reaprendia a ser democrático, Joãosinho Trinta resolveu não deixar barato: levou o Cristo para a passarela do samba, porém coberto de sacos de lixo com os dizeres “MESMO PROIBIDO, OLHAI POR NÓS!”, gerando uma verdadeira comoção e causando ainda mais rebuliço diante do moralismo que nos censura até hoje.



            Outro desfile que ficou guardado na memória do inconsciente coletivo – e eu me incluo entre essas pessoas, porque eu lembro bem! – foi o lendário desfile da Estação Primeira de Mangueira entre o domingo e a segunda-feira de carnaval trinta anos depois da barulhenta e controversa passagem da Beija-Flor pela mesma passarela do samba, em 2019. Frustrado com uma passagem mediana da Portela pela Avenida Marquês de Sapucaí (naquele ano, a homenageada era Clara Nunes, uma de suas portelenses mais ilustres e uma das cantoras preferidas daqui de casa), já estava me preparando para desligar a TV e ir dormir quando eu vi a apresentação da agremiação de Cartola no seu início.

            Duas ou três pessoas me advertiram a respeito da beleza do samba-enredo da Mangueira para o ano de 2019 e eu não dei o menor crédito por pura implicância, provavelmente. Mesmo assim, decidi dar uma chance aos mangueirenses e fiz questão de ficar acordado às 4 horas da manhã para assistir o que eles tinham preparado para a Marquês de Sapucaí. Em menos de cinco minutos fui completamente arrebatado pela beleza de um dos desfiles de carnaval mais inesquecíveis da minha vida. Estava diante de um samba-enredo imbatível: refrão encantador e fácil de ser assimilado, belas fantasias e alegorias, irreverência mil e uma proposta (ousadíssima) de recontar a história do Brasil tão bem contada pelos brancos bem-sucedidos e muito mal contada sob a perspectiva de negros, indígenas, pobres e outros que nunca compactuaram com as artimanhas do poder oficial.

            Fazer o brasileiro pensar em coisa séria na madrugada de uma segunda-feira de Carnaval e reverenciar heróis vivos e saudosos é o maior legado que a Estação Primeira de Mangueira deixou para todos naquele desfile de 2019. Além de deixar registrado em versos e sons a luta de nomes como Leci Brandão, Zuzu Angel, Jamelão, Mussum, Dandara, Aqualtune, Chunhambebe, Luísa Mahin, Tereza de Banguela, Mariana Crioula, Carolina de Jesus, Aleijadinho, Marielle Franco e tantos outros para que possamos ter a oportunidade de conhecer quem são os verdadeiros lutadores da nossa pátria. O carnaval de sambódromo, essa arte tão elitizada e tomada pela arrogância das celebridades, dos bicheiros e dos pagantes dos custosos camarotes vai de volta para as mãos do povo que o criou.

        Leandro Vieira, carnavalesco da Estação Primeira de Mangueira e um excelente discípulo de Mestre Joãosinho Trinta, decidiu ignorar reis, rainhas, escravocratas e bandeirantes que mancharam as páginas da história de nosso país de sangue, suor e opressão para resgatar a memória daqueles que não puderam ver seus nomes, fotos ou ilustrações nas páginas dos livros. Seguindo a cartilha de um dos maiores mestres da história do carnaval, Leandro fez questão de encerrar o desfile da Mangueira com uma bandeira do Brasil estilizada de verde e rosa e com os dizeres “Índios, Negros e Pobres” no lugar dos dizeres “Ordem e Progresso” que ocupam o símbolo da nossa soberania. Os excluídos pela “história oficial” receberam uma consagração merecida 519 anos depois da “descoberta” da Terra do Carnaval. Contar as memórias de nosso país sob a ótica de mulheres, de indígenas e de torturados pela Ditadura Militar em tempos de retrocesso democrático é, sobretudo, um gesto de ousadia e coragem tal qual Joãosinho fez à frente da Beija-Flor de Nilópolis trinta anos antes.


          A folia não existe apenas para o mero desfrute e entretenimento dos brasileiros nas ruas, avenidas e passarelas do samba: ela existe também para que as pessoas possam demonstrar o descontentamento coletivo perante o poder oficial, por isso a ira de nossos governantes contra o carnaval é permanente. A sátira e a resistência são as armas dos oprimidos para sobreviver às misérias e aos desmandos do dia-a-dia. Por isso, não me surpreendi nem um pouco ao ver os defensores do atual governo, conservador e retrógado por excelência, amaldiçoando o não-carnaval de 2021 como se fosse um castigo divino por uma imagem de um Jesus Cristo sendo torturado por um diabo estilizado.

Ainda precisamos de muitos Joãosinhos e Leandros que tenham a coragem de colocar os tabus para desfilarem nas passarelas do samba para espantar a caretice e a desonestidade daqueles que nos (des)governam. Para desgosto e desespero da turba conservadora e mesquinha, em 2022 voltaremos para fazer um dos carnavais mais bonitos da história, dignos de fazer parte das “memórias de fevereiro” que fazem parte do inconsciente coletivo de muitas pessoas.

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