30 de dezembro de 2015

TROVA # 63


 ELZA SOARES DA VIDA


"Desde que me entendo por gente
Elza Soares da vida
Dar armas brancas, químicas, quentes
Música é a preferida
Eu disse
Dar armas brancas, químicas, quentes
Música é a preferida

Desde que me entendo por gente
Eu sambo, eu faço o que gosto
My soul is black, meu sangue é quente
Eu quando gosto, me enrosco
Eu disse
My soul is black, meu sangue é quente
Eu quando gosto, me enrosco

Desde que me entendo por gente
Difíceis momentos tristes
Vivus vi veri vici noutros continentes
Eu sei que o amor resiste
Eu disse
Vivus vi veri vici noutros continentes
Eu sei que o amor resiste.
"

("Elza Soares" - Itamar Assumpção - Canção que o Nego Dito escreveu para a musa de Garrincha e que é a última faixa de Pretobrás II: Maldito Vírgula [2010]).


Elza Soares é uma daquelas atrações musicais brasileiras que já deveriam ser classificadas como verdadeiras instituições. Daquelas que deveriam ser tombadas pelo patrimônio histórico da humanidade. Por sua história, por seu tempo de atividade, além de seu talento. São mais de 50 anos de música, 78 anos confessos de idade, 85 de acordo com alguns jornalistas e 350 anos segundo as minhas prerrogativas - porque se a gente envelhecesse a cada golpe fatal que a vida nos oferece, Elzinha teria uma lista infinita de dores e amores para nos ofertar...




Minha primeira memória da musa mais célebre de Garrincha data dos meus primeiros anos da Faculdade de Letras, quando eu era um jovem encantado com a MPB de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque. Ouvi a gravação antológica de "Língua", de Caetano, e fiquei embasbacado com aquela voz rouca, que perguntava o que nossa língua portuguesa queria e podia fazer por nós. A cada ganido, grito rouco e pinote dela eu tinha a plena certeza de que Elza Soares devia ter vindo de outro planeta. O da fome, como ela disse pra Ary Barroso, lá no início de sua carreira:

"- De que planeta você está vindo, minha filha?! - indagou Ary [Barroso], assustado.
- Do planeta fome!
Como que entendendo o recado, ele parou de rir e anunciou que Elza Soares cantaria "Lama". De Paulo Marques e Ailce Chaves. O conjunto atacou a introdução - fá sustenido. Orós encarou a garota e sorriu. Ela respondeu com a mesma alegria e pôs-se a cantar, botando na voz te a a sua força interior, suas angústias, sonhos e esperanças. Muitos espectadores puseram-se de pé para aplaudi-la. Ary se impressionou com seu dinamismo e potencial vocal. Chegou à segunda pede com redobrado vigor. Decidiu, também, exibir seu lado de atriz, da menina que pedia esmola nas calçadas da Central chorando para conseguir os trocados da passagem.

Mais palmas surgiram de todos os cantos do auditório. Ao final da interpretação, aplausos entusiasmados e pedidos de bis. Elza foi aclamado como a grande vencedora da noite e repetiu a canção. Ary abraçou-a e beijou-a. Teria que voltar à emissora bom-dia seguinte para receber o prêmio."

LOUZEIRO, José. "Elza Soares: Cantando Para Não Enlouquecer". São Paulo: Ed. Globo, 1997, p.47.





Presenciei pela primeira vez o vigor de Elza Soares em cena lá pelos idos de 2004 ou 2005 quando fui ver uma apresentação de Vivo Feliz no Teatro Rival. Antes de surgir em cena, fomos surpreendidos com o palco escurecido, os músicos paralisados e Elza cantando uma versão lancinante de "O Meu Guri" (Chico Buarque) à capella. Pouco depois, ela surgia em cena, deslumbrante em seu vestido curto, sua peruca black power e cantando, ganindo e sambando loucamente em cima de seu salto plataforma 15. O que foi mais arrebatador foi o momento no qual a cantora deixou de necessitar do microfone para cantar e deixou o aparato no chão e cantou para a multidão sem a necessidade de poses ou artifícios. Nada tinha sido mais digno de coragem para mim até aquele momento...



Alguns anos depois, já devidamente adaptado a São Paulo, soube em meados de 2007 que Elza iria gravar um DVD ao vivo no SESC Vila Mariana. Ficamos tão felizes com a possibilidade de assistir a um novo espetáculo que ainda por cima daria seria eternizado em imagem e som diretamente da primeira fila que mal podíamos conter a excitação. No entanto, fomos surpreendidos com a infeliz notícia de que o show e a gravação seriam cancelados devido ao fato de que Elza Soares teve que ser internada às pressas pra tratar de um problema de coluna grave. O evento foi remarcado para uma data a qual infelizmente não poderíamos comparecer. O resultado final foi Beba-Me, um dos espetáculos mais belos de toda a carreira de uma das cantoras mais importantes da música brasileira. Fiquei muito desapontado de não ter presenciado aquele momento...


As internações recentes deixaram claro que o estado físico de Elza Soares tinha sido deveras abalado pelas batucadas da vida afora. Sua voz ainda era a mesma, porém as dores nas costas lhe obrigavam a fazer seus shows sentada, o que lhe impedia de sambar freneticamente em cima de um salto 15. Mesmo assim, fomos assistir a uma apresentação da Diva Negra ao lado do violonista João de Aquino no saudoso Teatro Fecap lá pelos idos de 2010 ou 2011. O cansaço extremo de um professor horista, extenuado em ter que trabalhar por horas e horas durante a semana inteira e no dia do show (um sábado) não me permitiu que eu aproveitasse o show do jeito que eu deveria: dormi em alguns trechos, tomado pela mais absoluta exaustão. Se arrependimento matasse, minhas cinzas já estariam voando por aí há bastante tempo...



Foi em 2015 que finalmente reencontrei Elza Soares. E este reencontro foi de uma maneira tão ocasional e tão avassaladora que não posso deixar de descrever tamanho impacto. No início de outubro de 2015, envolto em milhares de obrigações profissionais, soube que o show baseado no CD A Mulher do Fim do Mundo estrearia em São Paulo no mesmo final de semana em que eu teria que me ausentar da cidade. Ao retornar para Sampa e ver trechos das apresentações que tinha perdido no YouTube, vi que Elza ainda conseguia arrebatar plateias inteiras com o simples e atômico impacto de sua voz ao nos pedir, clamar, implorar para que ela continuasse a cantar.




Ouvi o CD e fiquei impactado com a modernidade, a ousadia e coragem que emanam daquela mulher de 78 anos. A Mulher do Fim do Mundo fez com que os mais tradicionalistas torcessem o nariz, mas encantou milhares de outros e (até onde bem sei...) tem vendido bastante. Elza Soares tem feito shows em casas lotadas e eu tive a honra indiscutível de vê-la cantar no início de dezembro de 2015, no Teatro do SESC Pompeia: nunca tinha visto nenhuma artista ser aplaudida tantas vezes em cena aberta. Ah, um detalhe importante: de pé! Outro detalhe fundamental: ela consegue manter seu domínio pleno em cena sentada no topo de um trono, como uma rainha ao cantar e vislumbrar seu próprio universo em decomposição e desespero.


O que explica o sucesso avassalador deste projeto de Elza Soares? Primeiramente porque é o retorno de uma das artistas mais revolucionárias da música brasileira aos palcos e ao disco. Em segundo lugar, A Mulher do Fim do Mundo é um disco arrojado, urbano, fortíssimo e que atira as verdades na cara do ouvinte sem um pingo de dó. Terceiro e mais importante de tudo: Elza não tem o menor pudor em expor seus sentimentos mais intensos em praça pública, o que nos conecta ao nosso fosso emocional mais profundo. É por isso e tudo o mais que a aplaudimos sempre que possível. Entusiasticamente. E de pé!






Ver e ouvir a eterna musa de Garrincha cantando intensamente, lançando mão de suas químicas quentes e de suas armas brancas em um universo de estrelas Pop de brilho efêmero e fabricado é ter a concreta esperança de que ainda existe salvação no meio musical brasileiro. Em um ano de perdas tão lastimáveis como foi o ano de 2015, ver Elza Soares cantando por aí é um ganho impressionante. Sem tamanho. Do tamanho do mundo que encaminhamos para o fim. Do tamanho do amor pelas coisas que ainda resiste...

LEIA MAIS SOBRE O CD A MULHER DO FIM DO MUNDO,
DE ELZA SOARES, PARA O BLOG PEQUENOS CLÁSSICOS PERDIDOS:


OUÇA CD A MULHER DO FIM DO MUNDO,
DE ELZA SOARES, NA ÍNTEGRA:

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