O ALTO PREÇO
DO PENSAMENTO
“Pena eu não ser burro
Não sofria tanto”
(Raul Seixas, Kika Seixas e Cláudio Roberto, 1980)
O maestro soberano Antônio Carlos Jobim
dizia que o Brasil não era um país para principiantes. Raul Seixas,
sarcasticamente, ainda iria entoar o verso “A solução é alugar o Brasil”. Ao
tentarmos entender os acontecimentos políticos e sociais do Brasil de 2016,
vejo que estas frases fazem cada vez mais sentido. As contradições que regem a
vida de muitos brasileiros são dignas de um estudo acadêmico de fôlego ou de
uma ação urgentíssima de um exorcista para dar um pouco mais de juízo e
coerência para as pessoas.
Os efeitos colaterais do golpe
parlamentar que tirou Dilma Rousseff do cargo e que varreu o PT do Governo
Federal já começaram a aparecer diante dos olhos de todos: o governo golpista e
ilegítimo de Michel Temer tem adotado medidas de altíssima austeridade contra
as camadas mais pobres da sociedade brasileira. A aprovação de uma PEC
(Proposta de Emenda à Constituição) que limita os gastos públicos com saúde e
educação por 20 anos é um retrocesso de três décadas ou mais. Para poder
garantir a aprovação destas medidas, Temer e sua corja aumentaram os salários
do judiciário e do legislativo e investiu rios de dinheiro no GAFE (Globo,
Abril, Folha e Estadão) para garantir a tão sonhada tranquilidade enquanto “trabalha”
pelo Brasil.
A maioria do eleitorado nacional,
descontente com a crise econômica que tem deixado milhões de brasileiros
desempregados e sem dinheiro, elegeu (em alta escala) os políticos mais
conservadores e reacionários do momento para as prefeituras do país. As
principais capitais do Brasil serão governadas pelas expressões locais do que
há de pior em matéria de retrocesso
para o mandato 2017-2020: João Doria Jr. (São Paulo), Marcelo Crivella (Rio de
Janeiro), Alexandre Kalil (Belo Horizonte), Rafael Greca (Curitiba) e Nelson
Marchezan Jr. (Porto Alegre). Um lobista privatizador, um pastor evangélico, um
cartola do futebol, um detrator dos pobres e um neto da ditadura militar.
Milhões de pessoas nas mãos do que há de mais repugnante na classe política
brasileira graças ao antipetismo ostensivo que a mídia brasileira dissemina
diariamente e à falta de tradição reflexiva crítica da maioria dos eleitores.
A busca pela coerência e por uma
compreensão mais clarividente dos fatos e acontecimentos nos causa sentimentos
dos mais negativos: raiva, frustração, decepção, desilusão, desespero,
descrença e muitos palavrões impublicáveis. Não se trata apenas de um mero
desapontamento: tamanha perplexidade se dá diante de dois fatos: 1) o desprezo
de uma parcela expressiva da sociedade por aqueles que pensam e refletem acerca
dos ocorridos (por defendermos a democracia e discordarmos veementemente da
cartilha neoliberal, somos tachados de “petistas”, “mortadelas”, “corruptos” e
por aí vai...); 2) a derrocada dos grupos de esquerda, fragmentada e desunida,
enquanto uma onda reacionária de extrema direita surge aos olhos do público com
a bênção e a chancela do GAFE.
Vislumbrar o apoio significativo para
organizações que abominam as políticas sociais dos governos petistas, que acham
que direitos de LGBTs, negros e mulheres são privilégios, que flertam com o
fascismo e acham nomes como os de Adolf Hitler, Jair Bolsonaro e Donald Trump o
verdadeiro máximo é algo que não apenas dói no fundo da alma, como também é
fruto de muita incoerência e estupidez quando os apoiadores são compostos por
pessoas não-brancas e/ou não-detentoras de privilégios. É de uma burrice atroz
e impressionante ao estarmos diante de tamanha contradição. Os cidadãos que
concedem seu apoio às forças fascistas emergentes são os mesmos que tecem
críticas ferozes às milhares de ocupações de escolas e universidades do Brasil
– para eles, os estudantes que estão protestando contra a reforma do Ensino
Médio e da PEC são meros vagabundos, arruaceiros, maconheiros e inimigos da
ordem pública desinteressados em estudar.
São episódios como estes que revelam a
extensão do preconceito e do ódio de classes, raças, minorias e ideologias que
circulam na mídia e no discurso do brasileiro comum. A livre manifestação do
fascismo sob a chancela de uma “libertinagem de imprensa” que atende aos
interesses das oligarquias brasileiras tem ajudado a eleger políticos dos mais
conservadores nos últimos anos. Os efeitos das “medidas impopulares” destes
governistas serão sentidos pela classe trabalhadora e pela classe média que
apoiou os programas de governo das elites. A democracia, esta verdadeira
exceção do sistema político brasileiro, é comprometida e vilipendiada mais de
uma vez pela falta de pensamento crítico dos que deveriam zelar por ela.
Quando quero entender os rumos nefastos
que o Brasil tem tomado nestes tempos mais recentes, sempre vou ao Google em
busca das máximas incomparáveis de Nelson Rodrigues. Não consigo encontrar
resposta contundente em nenhum filósofo, artista ou intelectual que me
satisfaça tanto quanto as reflexões sensacionais do autor de Toda Nudez Será Castigada. Disse Nelson
certa vez: “É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra
hedionda. O ser humano só se salvará se, ao passar a mão no rosto, reconhecer a
própria hediondez”.
Sim, Nelson: você tem razão! O problema
é que a hediondez do Brasil se faz cada vez mais presente enquanto a delicadeza
e a compaixão se esvaem a olhos vistos. Nem é preciso pagar o alto preço de um
pensamento coerente para reconhecer isto...
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