27 de dezembro de 2016

TROVA # 104

PARA GEORGE, COM AMOR




"It's a cruel world
We've so much to lose
And what we have to learn
We rarely choose"
(George Michael, 1996)


George Michael nos deixou no Natal de 2016. Discretamente, longe dos holofotes, sem muito alarde por parte de sua assessoria de imprensa. Misteriosamente. Milhões de fãs chocados, afinal, ele tinha apenas 53 anos de idade e estava trabalhando em um álbum de canções inéditas. Uma perda sem tamanho para a música, o ativismo LGBT e para as causas humanitárias do planeta.



George formou o duo Wham! ao lado de Andrew Ridgeley durante a primeira metade dos anos 1980

As lembranças mais doces da minha infância eram relacionadas aos sons que se ouviam dentro de casa. George Michael foi uma das trilhas sonoras mais marcantes, se não foi o mais impactante dos meus primeiros anos. "Careless Whisper" e “Wake Me Up, Before You Go-Go” eram figurinhas fáceis e tocavam bastante do toca-fitas do carro de meu Pai em meados da década de 1980. Até hoje eu me lembro do violão e da guitarra anos 1950 de Faith (1987), primeiro álbum solo de George. Meu avô adorava ouvir aquele disco nas manhãs de sábado, enquanto eu brincava na piscina, vivendo a felicidade dos meus 7, 8 anos de idade.






George Michael foi a grande novidade do universo Pop do final da década de 1980. Conseguiu fazer frente aos feitos de Prince, Madonna e Michael Jackson com sua música inteligente e seu visual retrô - casacos de couro, calça jeans, camiseta branca, topetes estilo Elvis com luzes, barba impecável e cerrada, um brinco dourado de crucifixo e um sex appeal de arrebatar multidões (homens e mulheres!). 




A diferença de George para os pares de sua geração? Em um ÚNICO álbum, ele compunha letras bastante densas para canções que iam do R&B e Pop típico dos anos 1980 ("Monkey") ao Jazz ("Kissing a Fool"), sem deixar de passar por baladas açucaradas ("One More Try") e pelos remixes típicos de santuários bate-estacas ("I Want Your Sex"). Faith resistiu ao passar dos anos e se tornou um dos discos mais vendidos da história da música, com videoclipes belíssimos – o clipe extraordinário de "Father Figure", que narra a saga amorosa de uma top model e um yellow cab driver, por exemplo, não sai da minha cabeça até hoje -  e que fizeram do jovem Georgios Kyriacos Panayiotou (o verdadeiro nome do astro) um ícone da música popular.






Quando Listen without Prejudice, Vol. 1 (o segundo volume foi cogitado, mas nunca lançado) veio a público, em 1990, eu tinha 9 anos de idade. Apesar de várias canções daquele disco tocado nas rádios, na MTV e em trilhas sonoras de novela da Globo, George Michael entrou em uma guerra intensa com a sua gravadora na época, a Sony Music, que achou as canções daquele disco um tanto "elaboradas" demais para o gosto popular. Por outro lado, George estava lutando arduamente para quebrar a imagem do "machão-hétero-comedor" que tinha se popularizado a partir do sucesso de Faith.






As brigas judiciais entre George Michael e a Sony Music renderam uma série de capítulos amargos para ambas as partes. O astro foi obrigado a lançar dois discos pela gravadora (um de inéditas, outro com um apanhado de sua carreira musical) para que a disputa finalmente se encerrasse. Enquanto os tribunais trabalhavam no caso, George foi investindo em projetos paralelos: o EP Five Live foi resultado de uma colaboração do cantor com o grupo Queen e com a participação especial de Lisa Stansfield. Além disso, várias participações em discos-tributos e álbuns com renda revertida para pesquisas de cura da AIDS. 



Eu tinha 12 anos na época em que George Michael assumiu temporariamente o lugar do récem-falecido Freddie Mercury e fez um trabalho esplêndido com o Queen. Havia uma grande esperança de que o grupo retornasse aos discos e aos palcos com um novo vocalista, que teria grandes chances de fazer um excelente trabalho. George, inteligentemente, recusou o convite. Primeiro, porque sabia do risco e da responsabilidade de assumir o posto de alguém insubstituível. Segundo, porque ele tinha coisas a dizer. Estava mais velho, mais calejado com as rasteiras da vida, mais experiente com a dor de ser alguém famoso.



Ao lado de Elton John durante o funeral da Princesa Diana, em 1997

Quando Older foi lançado, em meados do primeiro semestre de 1996, eu tinha 15 anos. Finalmente ficou claro para o resto do planeta o que já era para lá de óbvio para alguns: George Michael era homossexual. Suas canções atingiram o ápice do tom confessional, pois falavam de dor, de abandono, de sofrimento, de tesão, de fama e tantas outras coisas. Além disso, George experimentou diálogos da música Pop com o Funk, o R&B e o Jazz sem se esquecer das baladas certeiras, mas com uma diferença marcante: a presença de cordas e metais em várias das faixas do disco. A influência da música de Antônio Carlos Jobim, morto na época das gravações, foi provavelmente uma razão. Já a inspiração para o tom poético denso das letras se deve à morte de seu companheiro da época Anselmo Feleppa, um estilista brasileiro morto em consequência da AIDS.





Ouvi Older praticamente sem parar durante o verão de 1997. Enquanto George estabelecia sua imagem como um ícone gay, aquele CD continha canções que eram declarações de plena liberdade de corpo, de espírito, de sexualidade, de tantas outras coisas. “Fastlove, Pt.”1 até hoje me causa espécie pela quantidade de tesão e voyeurismo envolvidos em cada take daquele videoclipe e pela cena antológica de ver o Pop Star dançando debaixo de vários chuveiros sem o menor "medo do que suas fãs heterossexuais poderiam achar".






Nem preciso dizer aqui que Older é o meu trabalho preferido de George Michael. Por sua ousadia, por sua sofisticação, por sua coragem em dizer aquilo tudo em uma época na qual ser homossexual (ainda) era uma verdadeira sina. Apesar do disco foi um tremendo sucesso na Europa e na América do Sul – os norte-americanos reagiram friamente, visto que uma onda de boybands e novas Pop Stars femininas estava passando pelas terras de Uncle Sam –, George não fez uma turnê mundial do CD...






Os meios de comunicação não demoraram nem um pouco para explorar a vida sexual de George Michael com todo o sensacionalismo possível. Um episódio ocorrido com o Pop Star por volta de 1998 foi matéria de inúmeros tabloides: George foi flagrado fazendo sexo em um policial à paisana em um banheiro público de um parque. Após o fim da tempestade, era preciso divulgar o CD duplo Ladies & Gentlemen - The Best of George Michael, no entanto o astro decidiu fazer um videoclipe brilhante para a canção "Outside", no qual vários casais eram flagrados pela polícia praticando relações sexuais em público. Ver George Michael dançando vestido de policial, com direito a um cassetete na mão e zombando da repressão foi uma tirada bastante bem-humorada e uma crítica feroz às instituições como todo. Os canais da MTV exibiram o vídeo à exaustão (com cortes, diga-se de passagem), mas não havia problema: a Music Television não teria sido o que foi sem os clipes de George Michael! 

k.d. Lang, George Michael, Mick Hucknall e David Bowie






Ao invés de lançar um registro oficial de sua apresentação no programa MTV Unplugged, que trazia versões desplugadas de seus sucessos e gravações inéditas, George Michael se juntou ao renomado produtor musical Phil Ramone e lançou o belíssimo álbum de covers Songs From the Last Century em 1999. Fiquei boquiaberto para a versão jazzy de "Roxanne", o cartão de entrada de Sting à frente do lendário grupo The Police para o mundo da música. Já a releitura que George fez para "Wild is the Wind" é uma das gravações mais belas que eu já ouvi na minha vida, superando as versões de Frank Sinatra, David Bowie e da incomparável Nina Simone. A gravação de "Brother, Can You Spare a Dime?" é surpreendente para alguém que reinava as ondas do rádio e da MTV com o que havia de mais chiclete em termos de música Pop. É um dos discos mais belos já gravados por uma voz masculina na história da música do planeta, infelizmente ignorado por muitos. 





A partir da década de 2000, George Michael perdeu a criatividade musical de seus melhores anos. Patience (2003) está longe do nível de sofisticação de seus trabalhos anteriores. Twenty-Five (2006) foi um trabalho de revisão de seus primeiros 25 anos de carreira e foi promovido por uma turnê extensa por vários países do mundo. Symphonica (2014) continha os melhores momentos da turnê que George levou para os palcos entre 2011 e 2013. Um trabalho belíssimo de intérprete, que mostra a versatilidade e a sensibilidade de um grande cantor.





Os últimos anos não foram nada generosos para George: lutou intensamente contra a dependência química, contra internações por pneumonia, aumento de peso e crises de depressão. Foi um enorme benfeitor de causas humanitárias, atuou como voluntário de maneira anônima e nunca hesitou em doar quantias generosas para qualquer pessoa necessitada de algo. Era um grande ser humano. Um artista bastante sensível e criativo. George Michael brilhou pelas ondas do rádio, pelas TVs e pelos palcos enquanto pôde... A partir de 25 de dezembro de 2016, ele voltou a brilhar no céu!



Farewell, George! Thank you for your timeless music...



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