PARA GEORGE, COM AMOR
"It's a cruel world
We've so much to lose
And what we have to learn
We rarely choose"
(George Michael, 1996)
George Michael nos deixou no Natal de 2016. Discretamente, longe dos
holofotes, sem muito alarde por parte de sua assessoria de imprensa. Misteriosamente.
Milhões de fãs chocados, afinal, ele tinha apenas 53 anos de idade e estava
trabalhando em um álbum de canções inéditas. Uma perda sem tamanho para a
música, o ativismo LGBT e para as causas humanitárias do planeta.
George formou o duo Wham! ao lado de Andrew Ridgeley durante a primeira metade dos anos 1980 |
As lembranças mais doces da minha infância eram relacionadas aos sons
que se ouviam dentro de casa. George Michael foi uma das trilhas sonoras
mais marcantes, se não foi o mais impactante dos meus primeiros anos.
"Careless Whisper" e “Wake Me Up, Before You Go-Go” eram figurinhas
fáceis e tocavam bastante do toca-fitas do carro de meu Pai em meados da década
de 1980. Até hoje eu me lembro do violão e da guitarra anos 1950 de Faith (1987), primeiro álbum solo de George. Meu avô
adorava ouvir aquele disco nas manhãs de sábado, enquanto eu brincava na
piscina, vivendo a felicidade dos meus 7, 8 anos de idade.
George Michael foi a grande novidade do universo Pop do final da década de 1980. Conseguiu fazer frente aos feitos
de Prince, Madonna e Michael Jackson com sua música inteligente e seu visual
retrô - casacos de couro, calça jeans, camiseta branca, topetes estilo Elvis
com luzes, barba impecável e cerrada, um brinco dourado de crucifixo e um sex appeal de arrebatar multidões
(homens e mulheres!).
A diferença de George para os pares de sua geração? Em um ÚNICO álbum,
ele compunha letras bastante densas para canções que iam do R&B e Pop típico dos anos 1980
("Monkey") ao Jazz
("Kissing a Fool"), sem deixar de passar por baladas açucaradas
("One More Try") e pelos remixes típicos de santuários bate-estacas
("I Want Your Sex"). Faith resistiu ao passar dos anos e se tornou um dos
discos mais vendidos da história da música, com videoclipes belíssimos – o
clipe extraordinário de "Father Figure", que narra a saga amorosa de
uma top model e um yellow cab driver, por exemplo, não sai
da minha cabeça até hoje - e que fizeram do jovem Georgios Kyriacos
Panayiotou (o verdadeiro nome do astro) um ícone da música popular.
Quando Listen without
Prejudice, Vol. 1 (o segundo volume foi cogitado, mas nunca lançado) veio a público, em
1990, eu tinha 9 anos de idade. Apesar de várias canções daquele disco tocado
nas rádios, na MTV e em trilhas sonoras de novela da Globo, George Michael
entrou em uma guerra intensa com a sua gravadora na época, a Sony Music, que
achou as canções daquele disco um tanto "elaboradas" demais para o
gosto popular. Por outro lado, George estava lutando arduamente para quebrar a
imagem do "machão-hétero-comedor" que tinha se popularizado a partir
do sucesso de Faith.
As brigas judiciais entre George Michael e a Sony Music renderam uma
série de capítulos amargos para ambas as partes. O astro foi obrigado a lançar
dois discos pela gravadora (um de inéditas, outro com um apanhado de sua
carreira musical) para que a disputa finalmente se encerrasse. Enquanto os
tribunais trabalhavam no caso, George foi investindo em projetos paralelos: o
EP Five Live foi resultado de uma colaboração do cantor com o grupo Queen e com a participação
especial de Lisa Stansfield. Além disso, várias participações em
discos-tributos e álbuns com renda revertida para pesquisas de cura da
AIDS.
Eu tinha 12 anos na época em que George Michael assumiu temporariamente
o lugar do récem-falecido Freddie Mercury e fez um trabalho esplêndido com o
Queen. Havia uma grande esperança de que o grupo retornasse aos discos e aos
palcos com um novo vocalista, que teria grandes chances de fazer um excelente
trabalho. George, inteligentemente, recusou o convite. Primeiro, porque sabia
do risco e da responsabilidade de assumir o posto de alguém insubstituível.
Segundo, porque ele tinha coisas a dizer. Estava mais velho, mais calejado com
as rasteiras da vida, mais experiente com a dor de ser alguém famoso.
Ao lado de Elton John durante o funeral da Princesa Diana, em 1997 |
Quando Older foi lançado, em
meados do primeiro semestre de 1996, eu tinha 15 anos. Finalmente ficou claro
para o resto do planeta o que já era para lá de óbvio para alguns: George
Michael era homossexual. Suas canções atingiram o ápice do tom confessional,
pois falavam de dor, de abandono, de sofrimento, de tesão, de fama e tantas
outras coisas. Além disso, George experimentou diálogos da música Pop com o Funk, o R&B e o Jazz sem se esquecer das baladas
certeiras, mas com uma diferença marcante: a presença de cordas e metais em
várias das faixas do disco. A influência da música de Antônio Carlos Jobim,
morto na época das gravações, foi provavelmente uma razão. Já a inspiração para
o tom poético denso das letras se deve à morte de seu companheiro da época
Anselmo Feleppa, um estilista brasileiro morto em consequência da AIDS.
Ouvi Older praticamente
sem parar durante o verão de 1997. Enquanto George estabelecia sua imagem como
um ícone gay, aquele CD continha canções que eram declarações de plena
liberdade de corpo, de espírito, de sexualidade, de tantas outras coisas. “Fastlove,
Pt.”1 até hoje me causa espécie pela quantidade de tesão e voyeurismo
envolvidos em cada take daquele
videoclipe e pela cena antológica de ver o Pop Star dançando debaixo de vários
chuveiros sem o menor "medo do que suas fãs heterossexuais poderiam
achar".
Nem preciso dizer aqui que Older é o meu trabalho preferido de George Michael. Por sua
ousadia, por sua sofisticação, por sua coragem em dizer aquilo tudo em uma
época na qual ser homossexual (ainda) era uma verdadeira sina. Apesar do disco
foi um tremendo sucesso na Europa e na América do Sul – os norte-americanos
reagiram friamente, visto que uma onda de boybands
e novas Pop Stars femininas estava
passando pelas terras de Uncle Sam –,
George não fez uma turnê mundial do CD...
Os meios de comunicação não demoraram nem um pouco para explorar a vida
sexual de George Michael com todo o sensacionalismo possível. Um episódio
ocorrido com o Pop Star por volta de 1998 foi matéria de inúmeros tabloides:
George foi flagrado fazendo sexo em um policial à paisana em um banheiro
público de um parque. Após o fim da tempestade, era preciso divulgar o CD duplo Ladies & Gentlemen - The Best of George Michael, no entanto o
astro decidiu fazer um videoclipe brilhante para a canção "Outside",
no qual vários casais eram flagrados pela polícia praticando relações sexuais
em público. Ver George Michael dançando vestido de policial, com direito a um
cassetete na mão e zombando da repressão foi uma tirada bastante bem-humorada e
uma crítica feroz às instituições como todo. Os canais da MTV exibiram o vídeo
à exaustão (com cortes, diga-se de passagem), mas não havia problema: a Music
Television não teria sido o que foi sem os clipes de George Michael!
k.d. Lang, George Michael, Mick Hucknall e David Bowie |
Ao invés de lançar um registro oficial de sua apresentação no
programa MTV Unplugged, que trazia versões desplugadas de seus sucessos e gravações inéditas,
George Michael se juntou ao renomado produtor musical Phil Ramone e lançou o
belíssimo álbum de covers Songs From the Last Century em 1999. Fiquei boquiaberto para a versão jazzy de
"Roxanne", o cartão de entrada de Sting à frente do lendário grupo
The Police para o mundo da música. Já a releitura que George fez para "Wild is the Wind" é
uma das gravações mais belas que eu já ouvi na minha vida, superando as versões
de Frank Sinatra, David Bowie e da incomparável Nina Simone. A gravação de
"Brother, Can You Spare a Dime?" é surpreendente para alguém que
reinava as ondas do rádio e da MTV com o que havia de mais chiclete em termos
de música Pop. É um dos discos mais
belos já gravados por uma voz masculina na história da música do planeta,
infelizmente ignorado por muitos.
A partir da década de 2000, George Michael perdeu a criatividade musical
de seus melhores anos. Patience (2003) está longe do nível de sofisticação de seus
trabalhos anteriores. Twenty-Five (2006) foi um trabalho de revisão de seus primeiros
25 anos de carreira e foi promovido por uma turnê extensa por vários países do
mundo. Symphonica (2014) continha os melhores momentos da turnê que George levou para os
palcos entre 2011 e 2013. Um trabalho belíssimo de intérprete, que mostra a
versatilidade e a sensibilidade de um grande cantor.
Os últimos anos não foram nada generosos para George: lutou intensamente
contra a dependência química, contra internações por pneumonia, aumento de peso
e crises de depressão. Foi um enorme benfeitor de causas humanitárias, atuou
como voluntário de maneira anônima e nunca hesitou em doar quantias generosas
para qualquer pessoa necessitada de algo. Era um grande ser humano. Um artista
bastante sensível e criativo. George Michael brilhou pelas ondas do rádio,
pelas TVs e pelos palcos enquanto pôde... A partir de 25 de dezembro de
2016, ele voltou a brilhar no céu!
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