22 de janeiro de 2017

TROVA # 108

2016S



Uma flor nasceu na rua!
Passem longe bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
(...)
É feia. Mas é uma flor.
Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”.
(Carlos Drummond de Andrade, 1945)


         O noticiário dos primeiros dias do ano novo me traz a sensação de que 2017 seria, na verdade, 2016S, um modelo levemente aprimorado do ano teoricamente já terminado, mas que ainda ecoa escandalosamente pelos nossos ouvidos, deixando qualquer pessoa com um mínimo de sanidade política fora do prumo.
          Os paulistanos, por exemplo, são obrigados a conviver com as ações de marketing de uma gestão municipal que pretende embelezar a cidade ao torná-la fria e acinzentada, sem as cores quentes e vivas do grafite de vários de seus muros. A arte de rua, com seu discurso abertamente anárquico, está sendo sufocada por um oportunismo com ampla cobertura da mídia golpista e enquanto milhares de cidadãos não conseguem sequer adquirir remédios, por exemplo.
         Em menos de um mês da troca de poderes municipais, minha náusea já se faz presente, enquanto o nobre prefeito se traveste com os figurinos mais bizarros (lixeiro, pintor de muros, cadeirante) para fazer proselitismo eleitoral e ignorar a natureza genuína dos problemas de São Paulo.


*


         Nos primeiros dias de 2017, o Rio de Janeiro ainda padece com a crise das finanças do Estado. Dentre todas as instituições sucateadas pelo governo de Luiz Fernando Pezão, uma delas me deixa em pânico: a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), impossibilitada de funcionar graças à falta de pagamento dos salários de servidores e funcionários terceirizados. Sinto uma dor profunda na alma ao ver o sucateamento de um dos locais que mais visitei no final da minha adolescência e no início de minha vida acadêmica por conta da irresponsabilidade dos políticos cariocas. O GAFE, evidentemente, faz pouco caso com a tragédia que se alastra pelo Rio de Janeiro. Náusea interminável...

     
     Enquanto as elites econômicas esbravejam clamando a privatização do ensino público, a Uerj agoniza em praça pública e recebe o abraço desesperado da comunidade local para que o pior não aconteça. Em menos de um mês do início de 2016S, o ilustríssimo senhor governador ainda tenta sanar as dívidas de seu governo incompetente ao tentar privatizar alguns dos bens da população para fechar o rombo financeiro.

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         Em uma pausa para o café de uma tarde bastante ocupada de quinta-feira recebo a notícia chocante: o avião bimotor que levava um Ministro do Supremo Tribunal Federal tinha caído no mar de Paraty (RJ). O acontecimento trágico não teria me chocado tanto se o ocupante mais ilustre da aeronave não fosse o Ministro Teori Zavascki, relator da Operação Lava-Jato no STF. O magistrado já tinha recebido ameaças de morte por conta do desdobramento das investigações de corrupção na PETROBRAS e tinha planos de homologar dezenas de delações premiadas que colocariam centenas de políticos e empresários atrás das grades.


         Ao tomar conhecimento da morte do Ministro Teori, o Brasil ficou com a suspeita de que o ocorrido não teria sido uma mera fatalidade. Enquanto membros do governo golpista não deixaram de demonstrar alívio com o suposto acidente, pois daria mais tempo para que os notáveis pudessem se blindar contra as denúncias de corrupção. Em pouco menos de 20 dias do início de 2017, a náusea diante dos ocorridos só aumenta...


*



         Tenho o mesmo sentimento do sujeito lírico do poema “A Flor e A Náusea”, de Carlos Drummond de Andrade, ao ver os anúncios dos noticiários e ler as primeiras páginas dos jornais. Ainda estou à procura de algo que possa nos redimir do tédio, do nojo e do ódio das coisas. Por isso, em momentos de pura descrença e desespero, penso na figura de uma flor: quem sabe ela nos remedia contra a náusea generalizada?


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