2016S
“Uma flor nasceu na rua!
Passem longe bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
(...)
É feia. Mas é uma flor.
Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”.
(Carlos Drummond de Andrade, 1945)
O noticiário dos primeiros dias do ano
novo me traz a sensação de que 2017 seria, na verdade, 2016S, um modelo levemente aprimorado do ano teoricamente já
terminado, mas que ainda ecoa escandalosamente pelos nossos ouvidos, deixando
qualquer pessoa com um mínimo de sanidade política fora do prumo.
Os
paulistanos, por exemplo, são obrigados a conviver com as ações de marketing de uma gestão municipal que
pretende embelezar a cidade ao torná-la fria e acinzentada, sem as cores
quentes e vivas do grafite de vários de seus muros. A arte de rua, com seu
discurso abertamente anárquico, está sendo sufocada por um oportunismo com
ampla cobertura da mídia golpista e enquanto milhares de cidadãos não conseguem
sequer adquirir remédios, por exemplo.
Em menos de um mês da troca de poderes
municipais, minha náusea já se faz presente, enquanto o nobre prefeito se
traveste com os figurinos mais bizarros (lixeiro, pintor de muros, cadeirante)
para fazer proselitismo eleitoral e ignorar a natureza genuína dos problemas de
São Paulo.
*
Nos primeiros dias de 2017, o Rio de
Janeiro ainda padece com a crise das finanças do Estado. Dentre todas as
instituições sucateadas pelo governo de Luiz Fernando Pezão, uma delas me deixa
em pânico: a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), impossibilitada
de funcionar graças à falta de pagamento dos salários de servidores e
funcionários terceirizados. Sinto uma dor profunda na alma ao ver o
sucateamento de um dos locais que mais visitei no final da minha adolescência e
no início de minha vida acadêmica por conta da irresponsabilidade dos políticos
cariocas. O GAFE, evidentemente, faz pouco caso com a tragédia que se alastra pelo Rio de Janeiro. Náusea interminável...
Enquanto as elites econômicas
esbravejam clamando a privatização do ensino público, a Uerj agoniza em praça
pública e recebe o abraço desesperado da comunidade local para que o pior não
aconteça. Em menos de um mês do início de 2016S, o ilustríssimo senhor
governador ainda tenta sanar as dívidas de seu governo incompetente ao tentar
privatizar alguns dos bens da população para fechar o rombo financeiro.
*
Em uma pausa para o café de uma tarde
bastante ocupada de quinta-feira recebo a notícia chocante: o avião bimotor que
levava um Ministro do Supremo Tribunal Federal tinha caído no mar de Paraty
(RJ). O acontecimento trágico não teria me chocado tanto se o ocupante mais
ilustre da aeronave não fosse o Ministro Teori Zavascki, relator da Operação
Lava-Jato no STF. O magistrado já tinha recebido ameaças de morte por conta do
desdobramento das investigações de corrupção na PETROBRAS e tinha planos de
homologar dezenas de delações premiadas que colocariam centenas de políticos e
empresários atrás das grades.
Ao tomar conhecimento da morte do
Ministro Teori, o Brasil ficou com a suspeita de que o ocorrido não teria sido
uma mera fatalidade. Enquanto membros do governo golpista não deixaram de
demonstrar alívio com o suposto acidente, pois daria mais tempo para que os notáveis
pudessem se blindar contra as denúncias de corrupção. Em pouco menos de 20 dias
do início de 2017, a náusea diante dos ocorridos só aumenta...
*
Tenho o mesmo sentimento do sujeito
lírico do poema “A Flor e A Náusea”, de Carlos Drummond de Andrade, ao ver os anúncios
dos noticiários e ler as primeiras páginas dos jornais. Ainda estou à procura
de algo que possa nos redimir do tédio, do nojo e do ódio das coisas. Por isso,
em momentos de pura descrença e desespero, penso na figura de uma flor: quem
sabe ela nos remedia contra a náusea generalizada?
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