TULIPA RUIZ – DANCÊ
(2015)
Desde que ouvimos os anúncios de que o
terceiro álbum de Tulipa Ruiz já estava a caminho, criou-se um tremendo frisson
nas redes sociais em torno da questão da velha e batida questão “será que este
álbum vai superar o anterior?” que estamos enfastiados em ter que ler e
responder.
Para os ouvintes que agiram como
abelhas atentas do pólen musical deixado por Tulipa após os cultuados álbuns Efêmera (2010) e Tudo
Tanto (2012), não ficaram
muito surpresos com os rumos musicais que a cantora decidiu trilhar em seu
terceiro CD. O single “Megalomania” e o EP Tulipa Ruiz Remixes já eram pistas
claríssimas de que a flor cantante iria fazer como David Bowie fez conosco em
1983 e iria literalmente colocar a gente para dançar…
Sejamos diretos ao assunto: Dancê (2015), como diz o título, é um CD
para o ouvinte bater o pé, tirá-lo do chão, mexer a cabeça de um lado para o
outro e sair dançando, embarcando na levada loucamente musical (Sorry, Ivete!)
para a qual Tulipa nos convida, sem deixar de nos fazer refletir em uma série
de coisas, tal qual em “Prumo”, faixa de abertura do disco, assinada por ela em
parceria com Gustavo Ruiz:
Começou
Agora você vai tomar conta de si
Das tuas minhocas, caraminholas,
das encucações, dos teus pepinos
Das pérolas, das abobrinhas,
dos abacaxis, dos nós, dos faniquitos.
Se você está na dúvida se ouvir o CD
realmente vale a pena ou não, Dona Tulipa e banda enviam um recado muito claro
para os indecisos em “Reclame” (Tulipa Ruiz, Gustavo Ruiz, Caio Lopes, Marcio
Arantes e Luiz Chagas):
Trato azedume, mau-olhado, ‘quebrante’, vício
Trato treta de trabalho
Trabalho com amarração
Resolvo o seu problema com baralho, com pôquer,
bingo
Pra bituca de cigarro eu tenho a solução
Trago seu amor de volta se me fizer uma visita
A gente faz uma combinação, você acerta e acredita
No duro, dá certo
Nunca houve reclame.
Enquanto bailamos entre sons de metais
e brasa e acordes de guitarra capitaneados por Luiz Chagas e Gustavo Ruiz,
Tulipa segue disparando seu arsenal de provocações aos ouvintes de Dancê. “Jogo do Contente”, outra parceria
dela com Gustavo, traz uma sequência interessante de cutucadas àqueles que
insistem em viver dentro de uma determinada zona de conforto:
Todo motivo te leva a querer
Todo querer te faz ter vontade
Toda vontade te faz ter impulso
Todo impulso sempre me estimula
Toda sequência tem uma rotina
Toda rotina te causa estrago
Todo estrago merece um conserto
Todo conserto te modifica.
“Proporcional” questiona, com bom
humor, as diferenças entre as medidas das pessoas e aponta que não existem (ou
deveriam existir) obstáculos entre as diferenças:
Cada um tem seu formato
Apertado, colado, justo
Largo, folgado, amplo, vasto
Cheio, graúdo, forte, farto
Esguio, fino, compacto.
Visto GG, você P
Você P, eu GG
Visto GG, você P
Você P, eu GG.
“Expirou”, mais uma parceria dos
irmãos Tulipa e Gustavo Ruiz, traz a nostalgia de eventos dos quais não tivemos
a oportunidade de participar pelo simples fato de que ainda não vivíamos por
estas bandas. Alguns exemplos: os barulhentos festivais da canção brasileira
nos anos 1960 e 1970, São Francisco, Woodstock e a Swinging London, “Carcará”, “Aquele
Abraço” e “Divino Maravilhoso”, os Novos Baianos, as Dunas da Gal, FA-TAL e
Cantar, Itamar Assumpção e a Isca de Polícia, Grupo Rumo, Madame Satã são
apenas alguns exemplos de coisas que nós, nascidos após 1975, faríamos de um
tudo para ter ouvido e vivido na época de seu surgimento. Embalada pela
guitarra mítica de Lanny Gordin (que acompanhou Gal Costa em sua também mítica
turnê de 1971-72), Tulipa Ruiz saúda a alquimia dos mestres com o devido
respeito:
Sinto falta de um tempo que ouvi dos amigos
Tava escrito num livro
Tocou numa vitrola
Foi dançado, cantado, recitado, falado
Publicado, sentido, decupado, contado
Mas eu não tava ali
Quando é que a saudade daquilo que a gente não
viveu passa?
Se passa, parece que já foi, mas quando você vê
volta
Volta porque tem a sua cara, tem a ver com a sua
história.
“Elixir”, quarta faixa do disco, é um
petardo para uma sociedade que acorda com Prozac e dorme com Rivotril e
acredita que vive um fluxo extremamente natural de sua existência. Fruto de uma
noite em claro da própria Tulipa, a canção nos indica o sonho dourado de muitos
notívagos angustiados por aí:
Apaga, filtra, manera
Massageia o esqueleto
A cuca, a cabeça, a traqueia
Cotovelo do esqueleto
A lombriga, clavícula, pé e a costela do esqueleto
Dormir é o meu sonho principal
Legado aos olhos como se fosse elixir
Dormir é o meu sonho principal
Legado aos olhos como se fosse elixir
Zero reflexão, zero
Zero reflexão, zero
Zero reflexão, zero
E entra no estado zen.
Uma das faixas mais divertidas de Dancê é “Físico”, mais uma parceria de
Tulipa e Gustavo assumidamente inspirada no hit “Physical”, eternizado por
Olivia Newton-John em 1981. Para resgatar a sonoridade disco do início dos anos
1980, a trupe contou com a participação especial de Kassin, que tocou baixo,
guitarras e sintetizadores. O desejo de Tulipa Ruiz, ao contrário do que sugere
a tendência apontada pela estrela de Grease
e por pessoas obcecadas em viver relações baseadas somente em atributos
físicos, descreve alguém que vai além do que é obviamente esperado nas típicas
atrações sexuais:
Tudo que eu gosto tá em você
É puramente físico
(…)
O formato do nariz
Osso pontudo do pescoço
Lóbulo da orelha
Desenho da sobrancelha
Pintas pela pele
Pelos, tornozelo
Dedo, nuca, calcanhar, cabelo
Da boca pra fora
Fora de fora pra dentro
(…)
Você veio assim sem defeito.
“Old Boy”, décima faixa do disco, fala
sutilmente sobre a importância do viver com a certeza de que teremos um
aprendizado em relação ao que foi vivido. Em outras palavras: uma bela canção
sobre a morte, com versos singelos e uma interpretação sóbria de Tulipa:
Vai ter tempo de sobra
Mesmo sendo velho, sabe sobre tudo
Sempre pra valer
Volta e meia, cê volta
Nunca é tarde, pelas tantas recomeça
Vence em convencer
Não tem fim, nem começo
O agora é agora, voa
Já passou, olha, passou
E fica também na sua memória
Sempre você
O tempo e você.
O brilho de Dancê
também está nos convidados especiais que participam do disco. A elegância e a
jovialidade de João Donato fazem de “Tafetá” um dos momentos mais belos do
disco. Balada ao estilo do balancê inconfundível do criador de “A Rã” sem
deixar de incorporar o balancê frenético das produções musicais da flor
cantante, a faixa é uma ode à beleza masculina capitaneada pelos vocais em
canto e contracanto Donato e Tulipa, pontuados pelos metais, violão, percussão
e pelo piano fender rhodes em menos
de 4 minutos de duração:
Fino
Só você
Elegante
Sabe bem
Muito trato
Combinar
Na lapela
Tem o dom
Tem um padrão
Já que tem
Desenhado
Sabe usar
Tem casaco
Dégradé
Engomado
Tafetá
“Virou”, parceria de Tulipa Ruiz com
Felipe Cordeiro, Gustavo Ruiz, Manoel Cordeiro e Luiz Chagas, é uma colaboração
que contou com a participação de Felipe Cordeiro, dividindo os vocais com
Tulipa e de Manoel Cordeiro (pai de Felipe) que tocou guitarra na faixa. Os
versos do refrão já garantem a memorização do ouvinte já a partir das primeiras
audições de uma das faixas mais alegres de Dancê:
Era pra ficar no chão
Deu pé, decolou
Era pra ter sido em vão
Como é que durou?
Era pra ficar ali e por aí caminhou
Era pra ser menos sério
Mais cara-de-pau
Era para ser só nuvem e precipitou
Podia não ter dado em nada
Então como é que virou?
No entanto, a participação especial
mais intrigante de Dancê foi a do Metá Metá (Juçara Marcal – Voz, Kiko Dinucci
– Guitarra, Marcelo Cabral – Baixo, Sergito Machado – Bateria, Thiago França –
Sopros em “Algo Maior”, parceria de Tulipa Ruiz, com Gustavo Ruiz e Luiz
Chagas. As vozes fortíssimas e distintas de Tulipa e Juçara resultam na
sensação angustiante de uma tormenta que está a caminho, mas nunca chega – algo
típico para uma interpretação de um grupo de balé contemporâneo, com
coreografias típicas de Deborah Colker:
Tá pra nascer algo maior
que vá tirar do lugar as coisas que cismam em não
andar
Tá pra nascer algo maior
que tudo o que você já viu, leu, sentiu, soube ou
ouviu
Não sinta medo nem dó de ser feliz e se soltar,
de saber bem o que lhe convém
Tá pra nascer quem viva só,
pois de me,
myself and I já basta eu, você e nada
mais.
Ao ser encerrado com este épico de cinco
minutos e trinta e nove segundos, Dancê
deixa muito claro que Tulipa Ruiz não é uma cantora que segue os caminhos
óbvios já traçados pelo Pop e pela MPB recentes. Também revela um grande disco,
feito com inteligência acima do comum. E o melhor de tudo: ele consolida de vez
a parceria Tulipa Ruiz – Gustavo Ruiz, que tem um potencial gigantesco para já
constar no rol de parceiros célebres de nossa música como Marina Lima – Antonio
Cícero (irmãos e parceiros, tal qual Tulipa e Gustavo), Roberto Carlos – Erasmo
Carlos e tantas outras…
Enquanto isso, aproveite para afastar
os móveis da sala, abrir um espaço bem amplo para que você dar o play e colocar
Dancê para rodar na sua cabeça e sair
bailando sem a menor vergonha de dançar alegremente. Se Tulipa nos diz que um
bom estímulo pode nos trazer boas influências, deixe-se levar por este CD que,
para nós, já nasceu clássico.
Maravilhosa Tulipa, músicas contagiantes, show marcante, CD obrigatório...texto à altura. 😘
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