ONDAS DE ÓDIO, MAROLAS DE INTELIGÊNCIA
Em memória de Dona Marisa
Letícia Lula da Silva (1950-2017)
“Lies,
dripping off your mouth like dirt
Lies,
lie in every step you walk
Lies,
whispered sweetly in my ear
Lies,
how do I get out of here
Why,
why you have to be so cruel
Lies,
lies, lies, I ain't such a fool”
(Mick Jagger
& Keith Richards, 1978)
Existem momentos nos quais a barbárie
e os sentimentos negativos em relação à política brasileira são tão grandes que
apenas uma frase surge para mim diante dos fatos mais recentes: a humanidade é
o projeto mais fracassado deste planeta, sem chances de salvação.
A pior consequência do conservadorismo
que tomou conta do cotidiano nacional é a polarização política para cada
acontecimento (inter)nacional: tudo se tornou uma questão partidária, com
discussões acaloradas e agressões gratuitas, dependendo do teor de seu
posicionamento. Minha reação em relação à onda de ódio é um misto de silêncio,
tristeza e indignação, além de uma vergonha alheia sem tamanho.
O episódio mais recente destas ondas
de ódio aconteceu com a família mais odiada do país, a do ex-Presidente Luiz
Inácio Lula da Silva. Marisa Letícia, a esposa de Lula, sofreu um AVC em 24 de
janeiro de 2017 e foi levada às pressas para o Sírio Libanês, um dos hospitais
mais caros do Brasil. A antiga Primeira Dama passou 10 dias em coma induzido
até ter sua morte cerebral e falecer na noite de 2 de fevereiro de 2017.
Durante este período de agonia, o festival de boçalidades atingiu os níveis do
insuportável: uma tomografia de Marisa foi divulgada sem autorização, alguns
médicos chegaram a clamar pela morte da esposa de Lula e uma médica do hospital
divulgou um boletim médico da paciente sem autorização. As redes sociais
ferveram com palavras de ordem desejando o pior. O sadismo estava sendo
praticado por profissionais de saúde, as últimas pessoas no planeta que deveriam
adotar tamanha maldade. O GAFE (Globo, Abril, Folha e Estadão) estava em festa com a morte da companheira do maior líder sindical da história deste país...
A cegueira das pessoas que odeiam o PT
– mais um dos trunfos desta mídia conservadora, subserviente e cínica que o
Brasil possui – fez com que as pessoas ignorassem a desgraça e o sofrimento de
um senhor de idade que é obrigado a conviver sem a companheira de mais de 40
anos de vida em comum. Não cabe debate político ou palavras de ordem em momentos
de sofrimento de nossos (ex-)chefes de Estado: o espírito republicano,
democrático e a compaixão pelo próximo devem substituir o ódio e as desavenças
políticas. Vários integrantes da classe política brasileira entenderam a
importância de bandeiras brancas em episódios tão trágicos – Lula recebeu
visitas de seus aliados políticos no hospital (Dilma Rousseff, Olívio Dutra, Gleisi
Hoffman e outros correligionários), como também recebeu condolências de vários
adversários políticos, dentre estes uma comitiva do Presidente Michel Temer.
No entanto, de todos aqueles que foram
prestar solidariedade a Lula, a visita que mais me surpreendeu foi a do
ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso. Inimigos políticos, boxeadores de
lados opostos do ringue no qual a política brasileira se tornou, não se falavam
há anos. A maior lição de espírito republicano, por incrível que pareça, veio
de um político do PSDB: na dor e na desgraça, não existem convicções políticas,
o mais importante é a solidariedade. A Internet foi levada à loucura com o
encontro de FHC com Lula: como um homem que foi casado com uma das intelectuais
mais importantes do país foi se solidarizar com a dor de um marido de uma
ex-babá e humilde dona de casa?! Fernando Henrique amargou o fato de ter
sobrevivido à morte de Ruth Cardoso e recebeu o afeto e as condolências de seu
maior adversário político.
Dona Marisa Letícia nunca recebeu o
respeito e o prestígio de Dona Ruth Cardoso: foi ridicularizada, difamada e
atacada das maneiras mais torpes durante os oito anos do governo Lula por nunca
ter assumido nenhuma tarefa durante os dois mandatos do marido. Decidiu ser
dona de casa, a companheira e o esteio do ex-Presidente, mas nunca recebeu o status
de “bela, recatada e do lar” da esposa de Michel Temer. Na intimidade da
família Lula, quem dava as cartas e era a líder de todos era Marisa: dona de
personalidade forte, não tinha meias palavras, era uma mulher muito franca e
simples. Costurou a primeira bandeira do PT e levou várias mulheres do ABC às
ruas em plena ditadura para que Lula fosse libertado pelos militares de uma
pena injusta. Acusada e ré em um dos processos da Operação Lava Jato, sofreu
com a perseguição política ao seu clã e teve sua intimidade devassada pelo juiz
Sérgio Moro, que autorizou a divulgação de escutas telefônicas sem permissão do
Supremo Tribunal Federal.
Apesar da dor e do sofrimento da perda
de sua companheira de mais de quatro décadas, Lula fez um discurso eloquente no
velório de Marisa Letícia. Deixou claro que a perseguição política que ele e
sua família sofreram contribuíram para o AVC da esposa. As críticas das
subcelebridades e oportunistas de plantão nos forneceram mais provas de que o
ser humano é o projeto mais fracassado de que se tem notícia. O professor e
filósofo Leandro Karnal (UNICAMP) resumiu com perfeição o que penso a respeito
das pessoas que desejam a morte de outros sem a menor parcela de escrúpulo:
“Atacar ou ter
felicidade pela morte de um ser humano é uma prova absoluta de que a dor e o
ressentimento podem enlouquecer alguém. Se você sente felicidade pela morte de
um inimigo, guarde para si. Trazer à tona torna pública sua fraqueza, sua
desumanidade. Acima de tudo, mostra que este inimigo tinha razão ao dizer que
você era desequilibrado. Contestem, debatam, critiquem: mas enderecem tudo isto
a quem possa revidar. Por enquanto temos apenas um homem que perdeu sua
companheira, filhos órfãos e netos sem a avó. Entre os vivos, surgem
divergências e debates. Diante da morte, impõe-se silêncio e respeito. (...)”.
Quando eu vejo o noticiário diário,
sinto que há uma enorme onda de ódio ao lado de marolinhas de inteligência. A apatia
da classe média que se vestiu de verde e amarelo nas ruas diante da nomeação de
um membro do PSDB e ex-advogado do PCC (uma das organizações criminosas mais
poderosas do país) é tão grande que eu me pergunto onde as panelas que batiam
foram parar. Será que elas não são necessárias ou será que, segundo a nossa
ex-Primeira Dama, elas foram enfiadas em algum local indigno de publicação?
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