5 de maio de 2017

DISCOS DE VINIL # 30

RAUL SEIXAS – KRIG-HA, BANDOLO (1973)


 


Em um de seus sucessos mais expressivos na década de 1970, Rita Lee dizia que “um tal de Raul Seixas vem de disco voador”. Se levássemos em conta a música, a aparência, o estilo e a ambição de Raul dos Santos Seixas, poderíamos ter certeza de que Ritz estava nos dizendo a mais pura verdade. No entanto, os fatos dizem o contrário… Em seu primeiro sucesso, “Let Me Sing, Let Me Sing” dizia, descaradamente, miusturando Rock e Baião:


“Não vim aqui tratar dos seus problemas
O seu Messias ainda não chegou
Eu vim rever a moça de Ipanema
E vim dizer que o sonho
O sonho terminou
Eu vim rever a moça de Ipanema
E vim dizer que o sonho
O sonho terminou”

Pelo simples fato de não se tratar de um mero Messias do Rock, Raul também avisava que não estava aqui para agir e cantar como as belas cigarras, que encantam e seduzem a todos:

“Tenho 48 quilos, certo?
48 quilos de baião
Num vou cantar como a cigarra canta
Mas desse meu canto eu não lhe abro mão
Num vou cantar como a cigarra canta
Mas desse meu canto eu não lhe abro mão”

Quando Mestre Raul começou a tocar incessantemente entre nós a partir de 1973, já pudemos ver de cara que o baiano fã de Elvis Presley não tinha vindo para este mundo de estrelas musicais a passeio. Raulzito veio para fazer muito, mas muito barulho! Deixou para trás uma respeitada carreira de produtor musical, para dar início a uma carreira individual vitoriosa e brilhante. O título de sua estreia musical: Krig-Ha, Bandolo (título retirado de uma história de quadrinhos) quer dizer, nada mais nada menos do que, “Cuidado, lá vem o inimigo!”. Na foto da capa do disco, vemos um cantor que contraria toda a lógica do star system da Música Brasileira de 1973 – Raul se mostra magro, esquelético, de olhos entreabertos (efeitos da cannabis?), uma tatuagem na mão e um cordão dourado no centro do peito.
Definitivamente, Raul Seixas veio para ser um inimigo: da moral tradicionalista que regia o Brasil dos militares, dos bons costumes que nossos pais pregavam e nos obrigavam a seguir, ao bom gosto musical, dos velhos e novos baianos e sua música que deixava de ser contracultura para ser apropriada pelo sistema em meados da década de 1970.
Consequentemente, Raul Seixas se tornou um dos inimigos musicais mais perseguidos da ditadura militar entre 1973 e 1975 não pelo fato de assumir um discurso político, mas por assumir uma postura cáustica, irreverente e libertária perante o Brasil e o mundo que vivíamos nos anos 1970. Por outro lado, Raulzito se tornou o Rockstar brasileiro mais importante de nosso país graças à autenticidade de seu talento, de uma obra musical que se consolidou ao longo de duas décadas de sucesso e, principalmente, à sua estreia arrebatadora em disco.
Krig-Ha, Bandolo se inicia com uma belíssima introdução: Raulzito cantando “Good Rockin’ Tonight”, sucesso de Elvis Presley, deliciosamente desafinado aos nove anos de idade, revelando uma ambição de ser um astro que não se vê mais por aí em pleno século XXI. Para os que pensavam que estávamos ouvindo um disco de Rock, a faixa que se segue é um tapa muito bem dado nos ouvidos de pouca imaginação: “Mosca na Sopa” é um ponto de umbanda misturado com Rockabilly com um refrão tão empolgante e de uma ousadia tão gigantesca (Quem mais pensaria em misturar Macumba com Rock em 1973? Quem?!). Já avisava o baiano, com seu sotaque arrastado:


“Eu sou a mosca que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar
Eu sou a mosca que perturba o seu sono
Eu sou a mosca no seu quarto a zumbizar”

Raul Seixas não queria ser uma unanimidade. Queria conquistar o mundo com suas ideias, com seu ideal, com sua sociedade alternativa. Queria ser, como diz um de seus maiores clássicos, uma “Metamorfose Ambulante” ao invés de ‘ter aquela velha opinião formada sobre tudo’. Queria provocar a moral e os bons costumes do Brasil de 1973 com a sua “Dentadura Postiça” ao anunciar que ‘Vai subir / O preço do horror’. Queria nos avisar, via “As Minas do Rei Salomão”, que ‘Do passado me esqueci / No presente me perdi’ e que ‘Se chamarem diga que eu saí’.
Em “Al Capone”, avisa personalidades de peso como Frank Sinatra, Jesus Cristo, Júlio César e o velho mafioso de Chicago que em algum momento a picaretagem tem o seu fim, afinal, o velho Raulzito (que iria anunciar em pouco menos de uma década que tinha nascido há 10 mil anos atràs) era o astrólogo que conhecia os percalços da ‘história do princípio ao fim’. Na belíssima “Cachorro Urubu”, concluía que ‘A história é a mesma / Aprendi na quaresma / Depois do Carnaval / A carne é algo mortal / Com multa de avançar sinal’. E já em “Rockxixe”, enfim, avisava, sem a menor dó dos medíocres:


“Você é forte, mas eu sou muito mais lindo
O meu cinto cintilante, a minha bota, o meu boné
Não tenho pressa, tenho muita paciência
Na esquina da falência que eu te pego pelo pé”

Apesar de se revelar uma persona um tanto complexa de se compreender, Raulzito conseguia ter os seus momentos de lirismo e romantismo. Em “A Hora do Trem Passar”, ele suplica à mulher amada: ‘Diga meu amor, pois eu preciso escolher / Apagar as luzes, ficar perto de você’. Em “How Could I Know?”, pergunta, em inglês: ‘Como eu iria saber / que os meus olhos podiam ver no escuro?’, contrariando todas as expectativas de que era impossível distinguir o joio do trigo em tempos de trevas e escuridão.
No entanto, a canção mais emblemática de Raul Seixas foi escolhida para ser a última canção de Krig-Ha, Bandolo. “Ouro de Tolo” é uma crítica monumental ao pequeno burguês que sonhava com o sabor artificial do bolo solado do Milagre Econômico brasileiro, que esconde injustiças sociais, econômicas através de um viés político autoritário. Raulzito alega que deveria estar contente em meio ao seu Corcel 73, ao seu emprego que lhe faz um cidadão responsável, por ter tido sucesso, por deixar de passar fome no Rio de Janeiro, por ter o domingo para passear no zoológico e outras pequenices que fazem a vida de qualquer burguesia.
Eterno insatisfeito, porém, Raul acha que ‘vencer na vida’, seguindo a cartilha do sistema, é uma piada de péssimo gosto, por ser decepcionante, limitado, medíocre. Afinal de contas, nós, humanos, somos grandessíssemos idiotas que usam apenas 10% de nossas cabeças e que sendo doutores, padres ou policiais que contribuem para um ‘belo quadro social’ que não existe, que é falido desde a sua instituição via argumentos falaciosos. Diante da mediocridade que nos ronda, o que não precisamos fazer para nos livrar de uma existência comum. Deixemos a resposta para Mestre Raul:



“Eu é que não me sento no trono de um apartamento
Com a boca escancarada cheia de dentes
Esperando a morte chegar
Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais
No cume calmo do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora de um disco voador”


Para Raul Seixas, a fuga desta realidade absurda era o disco voador que, como o Godot de Samuel Beckett, nunca veio. Para a nossa felicidade, já que os extraterrestres deixaram Raulzito conosco cantando e tocando até o final da década de 1980, quando a Morte veio lhe buscar depois de anos e anos de abusos de álcool e drogas. No entanto, a mulher misteriosa com a foice na mão não nos levou a música. 
Por tudo isto, o momento pede que revisitemos Krig-Ha, Bandolo e possamos entender mais uma vez o porquê de Raul Seixas ser um dos artistas mais geniais do planeta. 


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