10 de setembro de 2017

TROVA # 136

ROGÉRIA:

DOS HOLOFOTES PARA AS ESTRELAS





Em memória de Rogéria (1943-2017)

Em cima de Astolfo Barroso Pinto, a Rogeria é uma performance de uma atriz. Porque eu não penso que sou mulher. Por vezes, num devaneio, posso até pensar, mas caio em mim e tenho aquela consciência de que eu sou um ator gay que se veste de mulher porque tem talento para representar e simpatia e educação para com os outros (...)
(Rogéria, 2016)



Sempre começamos uma semana com feriado prolongado com uma alegria sem fim: três dias úteis de trabalho, um feriado e uma ponte de feriado para incrementar o intervalo que vai da segunda a sexta é um alento para nós, trabalhadores exaustos da labuta implacável do ano letivo. No entanto, a euforia da espera pelo 7 de setembro se dissipou tristemente com a partida inesperada de Rogéria, a travesti da família brasileira, em 4 de setembro de 2017.

Elke Maravilha & Astolfo Barroso Pinto, que gostava de ser chamado de "Seu Rogéria".

Rogéria ocupava, para mim, o mesmo patamar que Elke Maravilha: ela é um tipo de ser humano extraordinário, que irradiava alegria, irreverência e elegância. Não deveria morrer jamais ou deveria envelhecer até os 100 anos ou mais para que o máximo de pessoas lhe conhecessem. Pioneira em um momento no qual o Brasil não estava sequer preparado para compreender a mínima noção de diversidade, Astolfo Barroso Pinto deixou o físico masculino de lado para viver sua feminilidade com toda a sua coragem e plenitude.

 


O preconceito que sofreu no início de sua trajetória, surpreendentemente, não veio da família (sua mãe foi de uma sensibilidade e de um apoio incomuns para uma mãe de transgênero naquela época): a repressão policial por ser travesti foi respondida à altura – na base da porrada, com muito sopapo e tapa na cara de meganha safado ou qualquer autor de bullying disposto a cercear a liberdade sexual dos outros. E fazia questão de deixar claro que era uma "bicha felicérrima" e que queria conquistar todas as faixas de público - das senhorinhas aos mais jovens – dispostos a alguns minutos de alegria e glamour.


Além de ser uma atriz excelente (chegou a fazer uma avó em uma telenovela, inclusive!) e uma showwoman espetacular, Rogéria tinha uma voz e uma afinação ótimas. Choro de rir até hoje ao rever sua participação especial como a irmã de Copélia (Arlette Salles) em um dos episódios da primeira temporada de Toma Lá, Dá Cá. Cantava os clássicos da música francesa e canções de musicais e cabarés com um toque camp muito peculiar, sem deixar de mostrar sua elegância e requinte em cada nota. Ela não deveria ter se restringido apenas aos shows de boates e tinha que ter gravado um disco com a fina flor do repertório dos seus shows.


Ouvir Dalida, Carmen Miranda ou Piaf na voz de Rogéria era um deleite para qualquer pessoa que adorasse música. Numa esquecida ocasião, fui ouvir um CD de Lana Bittencourt e levei um susto ao ver que a diva passional convidou Rogéria para um dueto em "Haja o que Houver", um samba-canção de Fernando César e Nazareno de Brito adorada pela comunidade LGBT. Surpreendentemente, as duas não só deram conta do recado, como protagonizaram um dos melhores momentos daquele disco.





Em uma noite de insônia, não me esqueço de estar zapeando pela TV e cair de paraquedas no Programa do Jô. Para meu deleite, vejo Rogéria à frente do sexteto de Jô Soares com um vestido longo e cabelos soltos como uma mistura de Marilyn Monroe e Rita Rayworth cantando "Ronda", um dos maiores clássicos da dor de corno da história de toda a música brasileira. Com o seu humor peculiar, a personagem criada por Astolfo Barroso Pinto interpretou os de Vanzolini da seguinte maneira: "Ah, se eu tivesse / Quem bem me quisesse / Esse alguém me diria / Desista, bicha louca: essa busca é inútil / E eu não desistia". O público explodia em emoção e gargalhadas para aplaudir a travesti da família brasileira de pé enquanto eu, estarrecido, voltava para a cama com o prazer de ter sido mordido pelo mosquito da insônia.




Quando fui assistir o documentário Divinas Divas, de Leandra Leal, na tela grande, fiquei apaixonado pelas histórias e pelas figuras de Jane di Castro, Divina Valéria, Brigitte de Búzios, Camille K, Eloína dos Leopardos, Fujikka de Halliday e Marquesa. No entanto, Rogéria era de todas a que eu admirava. Não só pela personalidade e pela trajetória, mas pelo fato de que ela era a única que fez parte da minha infância: nunca mais me esqueci daquela cena antológica da novela Tieta, na qual Ninette, exausta do assédio de Aminthas (personagem de Roberto Bonfim), dá um soco em seu algoz e revela que seu nome verdadeiro é Waldemar. Depois daquele soco, a minha infância deixou de ter a mesma inocência de antes: crianças de oito anos criadas por famílias tradicionais jamais sonhariam com a existência de travestis no mundo encantado das novelas de televisão. Ponto para Aguinaldo Silva por ter criado esta personagem antológica para tornar a trama original de Jorge Amado ainda mais explosiva.




Estava assistindo os capítulos da reprise de Tieta com a expectativa de ver a aparição esfuziante de Ninette por Santana do Agreste. Afinal, a novela de Aguinaldo Silva não se permitiu oxidar pelo passar do tempo: não apenas porque a qualidade do trabalho da teledramaturgia é excelente, mas principalmente porque a mentalidade do brasileiro comum não mudou tanto assim. A população brasileira tinha a obrigação de assistir novamente aquela antológica cena em que a personagem de Betty Faria dá uma aula de preconceito e diversidade sexual para o personagem de Cássio Gabus Mendes, diante do retrocesso nosso de cada dia e de tempos nos quais tudo e mais um pouco deve ser politicamente correto. Em tempos de tanta patrulha ideológica, muitos não deveriam entender o brilho de estrelas como Rogéria. É por isso, e por muitas coisas mais, que ela sempre foi e será muito necessária para a humanidade. Quando as ladies que estrelaram Divinas Divas cantavam e choravam "La Vie en Rose" em cima de seu caixão, cantei e chorei junto: afinal, Rogéria fazia parte da minha família de estrelas musicais a habitar o meu imaginário...




Dizer que Rogéria era uma estrela é simplesmente muito pouco. Rogéria brilhava como uma constelação inteira: era muito mais macho que muito macho que conta bravata por aí; era muito mais fêmea do que muita fêmea fazendo selfies e mostrando a bunda por aí só para revoltar as inimigas. Sua alegria de viver é a maior lição que recebemos para que façamos algo bem melhor de nós mesmos. Sem ressentimentos, sem mágoas, com coragem, com brilho e com toda a irreverência que nos cabe. A partir do mês de setembro, Astolfo Barroso Pinto deixa de brilhar sob as luzes de holofotes para ocupar o seu lugar junto de outras estrelas a nos iluminar por aí...




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