LEMBRANÇAS REGADAS A CAFEÍNA
A lição mais significativa em quase
40 anos de idade é a seguinte: seja bastante seletivo em relação a QUEM devemos
convidar para tomar um café conosco.
“I had some dreams
They were clouds in my coffee…”
(Carly
Simon, 1972)
A planta mágica e milagrosa que
conhecemos nos dias de hoje como CAFÉ surgiu há muitos anos atrás em Cafa e
Enária, regiões da Etiópia. Tempos depois, a especiaria começou a ser cultivada
no Iêmen, região do Oeste da Arábia com os nomes de “Kaweh”, “Kahwah” ou “Cahue” – os três com o mesmo
significado: VINHO.
Da Antiguidade até o Século XXI, o
café está para nós na mesma proporção que os longos cabelos estavam para
Sansão. Atualmente, existem locais nos quais podemos degusta-lo dos modos mais
diversos, com preços dos mais variados e das qualidades mais questionáveis
também. Diante do que está posto, o fato é indiscutível: entre as nuvens mais
espessas da memória, muitas das minhas lembranças foram regadas a doses
generosas de café.
Patti Smith - New York, 2015 |
Quando conheço experiências de
outras pessoas pela vida afora que também foram regadas a café, surge em mim
uma pontinha de identificação quase instantânea: Chico Buarque declarou que não
consegue trabalhar em projeto nenhum sem cafeína por perto; Patti Smith escreveu
um belo livro em 2015 no qual ela conta um pouco de suas andanças e leituras
por vários lugares ao redor do mundo, nos brindando com passagens por
cafeterias e polaroides de Nova York, Tóquio, Rockaway Beach, Tanger e até pela
Guiana Francesa.
Carly Simon - Londres, 1972 |
De todos os episódios alheios dos famosos e cafés, o meu preferido ocorreu por volta de 1971. Pouco antes de se tornar reconhecida no mundo inteiro por causa do hit “You’re So Vain”, Carly Simon relatou em versos e sons a sua enorme frustração de um amor malsucedido por meio de uma visão surpreendente: seus sonhos de viver a plenitude do sentimento amoroso foram tão consistentes quanto uma imagem passageira de nuvens que estavam refletidas sob o café que estava tomando em uma viagem de avião. Tempos depois, a própria Carly confessou que o insight foi fornecido a ela por um de seus companheiros de banda na época, o pianista Billy Mernit, que pediu para que ela prestasse mais atenção naquela montagem quase absurda e ela entendeu que os sonhos amorosos que ela vivia eram tão consistentes quanto às nuvens que a “visitaram”.
Minhas primeiras memórias da vida
adulta regadas a café remontam a meados dos anos 2000. Naquela época,
recém-instalado em São Paulo, minha amiga Ana Paula Raulickis resolveu criar um
blog com o sugestivo nome de Caféina.
Em cada dia da semana, uma pessoa escrevia um texto sob um pseudônimo e
divulgava seus escritos pela Internet afora. Em silenciosa homenagem a Carly
Simon, escolhi o codinome Mr. Simon para as
minhas poucas postagens do finado blog – tempos depois, a página do Facebook tornou-se
o veículo oficial das promoções do Cafeína, além de veículo de divulgação do
meu Blog e dos eventos relacionados
às noites de lançamento do meu primeiro livro e, evidentemente, de inúmeras
declarações de amor ao café capitaneadas incansavelmente pela Ana. De qualquer
maneira, foi graças ao Cafeína que eu criei coragem para investir na escrita,
sem medo de certos julgamentos por parte dos outros.
O logo da página do Cafeína no Facebook |
Antes de me aventurar pela escrita
de vez, precisei abraçar uma profissão “oficial”, pois se existem instituições
que sempre vencem a batalha do capital elas são os boletos de pagamento. Dar
conta de jornadas de trabalho que se estendiam pelos três turnos e com pouco
tempo de intervalo entre aulas e reuniões só era possível graças a generosas
doses de café. Quando trabalhava com aulas particulares, tinha a vantagem de
ter como local de trabalho o café Starbucks
ou a Cristallo do Shopping Center 3,
no coração da Avenida Paulista. Não foi uma vez ou duas que eu (estabanado
profissional que sempre fui) derrubei doses inteiras do líquido mágico das
arábias no meu ambiente de trabalho sem chegar a queimar ou sujar nenhum dos
meus alunos.
Por outro lado, a cozinha da escola onde trabalho hoje em dia se transformou em um ponto de encontro de alguns colegas de trabalho sempre dispostos a fazer “terapia de grupo”. Falando em situações terapêuticas em grupo, outra prática excelente à qual eu passei a me dedicar com três ex-companheiras de trabalho (e que se tornaram amigas muito queridas) uma ou duas vezes ao ano era marcar encontros que duravam tardes a fio. Quando achamos o local ideal para as nossas sessões de “Badmouthing Café”, o já saudoso Coffeetown Tatuapé (administrado por uma ex-aluna minha muito querida e fechado de vez por culpa da pandemia do coronavírus), não haveria limites para a nossa diversão, generosamente regada a cafés e pedaços de bolo Red Velvet. Momentos como esses, guardados carinhosamente na memória dos meus poucos afetos, nos fazem acreditar que viver vale (muito) a pena.
(É muito importante abrir parênteses para fazer uma diferenciação entre os tipos de pessoas com as quais nos sentamos em mesas de bar e em mesas de café. No momento do porre, qualquer um que estiver por perto serve para afogarmos nossas mágoas em copos de cerveja e/ou caipirinha. O mesmo não se aplica aos seres humanos com quem dividimos o prazer pela cafeína, pois confidências das mais íntimas são trocadas entre um macchiatto e um espresso – se as intimidades vazarem na mesa de um bar o culpado deve ser o álcool, jamais a cafeína. Eu me lembro claramente do sabor dos drinks servidos no Café do Ponto da Rua Augusta: bebidas inesquecíveis ao lado de pessoas que fiz questão de esquecer para todo o sempre. Por isso, a lição mais significativa que os meus quase 40 anos de idade me deram em matéria de amizades foi ser bastante seletivo em relação a QUEM devemos convidar para tomar um café conosco.)
Uma imagem da exposição Cápsula do Tempo: Identidade e Ruptura no Vestir de Ney Matogrosso |
Mas, por outro lado, é sempre
fundamental resgatarmos algumas memórias repletas do amor e do carinho que só
os nossos amigos, irmãos que escolhemos e que nos escolhem para a vida toda.
Jamais me esqueci de uma tarde em Santo Amaro, extremo sul de São Paulo, na
qual Rosana Barbosa e eu tomamos um generoso café na Kopenhagen depois de
visitar a exposição Cápsula do Tempo: Identidade e Ruptura no Vestir de Ney Matogrosso,
que reunia vários figurinos de palco de Ney em décadas de carreira pelos palcos
do Brasil e do mundo. O achocolatado deles foi um verdadeiro prêmio para nós
dois depois de horas de deslocamento de um lado para o outro da cidade.
Café Santo Grão - Foto: Nilton Serra |
Outro evento inesquecível para nós
aqui de casa foi quando nossos compadres Gabi e Luiz Medelo se deslocaram da
Zona Oeste para a Zona Leste de São Paulo às 23h de um sábado para irmos juntos
ao badalado Santo Grão, nos Jardins.
Para exercitar o meu (desnecessário) pedantismo, decidi deixar o café de lado a
princípio para pedir uma dose de Vinho do Porto e ficar bem esfuziante com a
“ousadia”. A mesa inteira caiu na gargalhada diante de minha frustração ao
descobrir o tamanho MINÚSCULO do cálice no qual a bebida foi servida. Ignorar
uma dose de café dentro de um templo da cafeína soa quase como uma ofensa aos
amantes do líquido mágico das arábias. Recolhida a revolta, pedi uma xícara de cappuccino e rumamos de volta à ZL para
fechar a noite tomando Irish Coffee
na antiga Cristallo do Tatuapé,
engolida pelas crises econômicas dos anos 2010 e pelas recorrentes especulações
imobiliárias.
Uma madrugada na cafeteria Cristallo, do Tatuapé - Foto: Nilton Serra
Uma lembrança que eu guardo com
bastante carinho é da primeira da Maria, nossa afilhada. A partir de julho de
2014, foi fundamental que o ritmo de trabalho cada vez mais frenético e
alucinante diminuísse para acompanhar o crescimento de uma menininha bastante
esperada um pouco mais de perto, já que ela mora a mais de 100 km de distância
de São Paulo. Em uma das nossas visitas a Campinas, meus compadres sempre nos
ofereceram doses bem fortes de espresso naquelas
canecas esmaltadas coloridinhas que alegram o visual de qualquer cozinha e de
qualquer mesa de jantar. Maricota, no meu colo, não só ficava animada com as
canequinhas, como também pediu a sua para “brincar” de tomar café com os
Dindos. Ao me ver sorvendo meus goles do líquido milagroso das arábias, a
pequerrucha passou a me imitar também, para total alegria de Tio Vini.
Em meio às incertezas constantes da
possibilidade de vivermos a normalidade das cafeterias por causa de uma
pandemia e da impossibilidade de abraçarmos quem a gente gosta, a única
possiblidade de prazer gerado pela cafeína que me sobrou foi o café que eu
tomava de tarde durante os capítulos de Brega &
Chique no Canal Viva. Entre um gole e outro, muitas das minhas
lembranças da vida antes do vírus retornam como cenas do filme da minha vida
que parece um passado bastante longínquo.
Uma selfie durante o isolamento acompanhado de uma xícara de café... |
Porém, como a promessa de conversas
íntimas, carinhos e afetos entre xícaras de café ainda é uma promessa
dependente de uma vacina ou do bom senso das pessoas, o máximo a ser feito é
ligar a câmera do celular para trocar confidências com quem te vê do outro lado
da telinha ou reavivar um pequeno diário de lembranças regadas a cafeína...
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