19 de outubro de 2020

TROVA # 151

 

LEMBRANÇAS REGADAS A CAFEÍNA

A lição mais significativa em quase 40 anos de idade é a seguinte: seja bastante seletivo em relação a QUEM devemos convidar para tomar um café conosco. 

I had some dreams

They were clouds in my coffee…

(Carly Simon, 1972)

 

A planta mágica e milagrosa que conhecemos nos dias de hoje como CAFÉ surgiu há muitos anos atrás em Cafa e Enária, regiões da Etiópia. Tempos depois, a especiaria começou a ser cultivada no Iêmen, região do Oeste da Arábia com os nomes de “Kaweh”, “Kahwah” ou “Cahue” – os três com o mesmo significado: VINHO.

Da Antiguidade até o Século XXI, o café está para nós na mesma proporção que os longos cabelos estavam para Sansão. Atualmente, existem locais nos quais podemos degusta-lo dos modos mais diversos, com preços dos mais variados e das qualidades mais questionáveis também. Diante do que está posto, o fato é indiscutível: entre as nuvens mais espessas da memória, muitas das minhas lembranças foram regadas a doses generosas de café.


Patti Smith - New York, 2015 


Quando conheço experiências de outras pessoas pela vida afora que também foram regadas a café, surge em mim uma pontinha de identificação quase instantânea: Chico Buarque declarou que não consegue trabalhar em projeto nenhum sem cafeína por perto; Patti Smith escreveu um belo livro em 2015 no qual ela conta um pouco de suas andanças e leituras por vários lugares ao redor do mundo, nos brindando com passagens por cafeterias e polaroides de Nova York, Tóquio, Rockaway Beach, Tanger e até pela Guiana Francesa.


Carly Simon - Londres, 1972

De todos os episódios alheios dos famosos e cafés, o meu preferido ocorreu por volta de 1971. Pouco antes de se tornar reconhecida no mundo inteiro por causa do hit “You’re So Vain”, Carly Simon relatou em versos e sons a sua enorme frustração de um amor malsucedido por meio de uma visão surpreendente: seus sonhos de viver a plenitude do sentimento amoroso foram tão consistentes quanto uma imagem passageira de nuvens que estavam refletidas sob o café que estava tomando em uma viagem de avião. Tempos depois, a própria Carly confessou que o insight foi fornecido a ela por um de seus companheiros de banda na época, o pianista Billy Mernit, que pediu para que ela prestasse mais atenção naquela montagem quase absurda e ela entendeu que os sonhos amorosos que ela vivia eram tão consistentes quanto às nuvens que a “visitaram”.



   Minhas primeiras memórias da vida adulta regadas a café remontam a meados dos anos 2000. Naquela época, recém-instalado em São Paulo, minha amiga Ana Paula Raulickis resolveu criar um blog com o sugestivo nome de Caféina. Em cada dia da semana, uma pessoa escrevia um texto sob um pseudônimo e divulgava seus escritos pela Internet afora. Em silenciosa homenagem a Carly Simon, escolhi o codinome Mr. Simon para as minhas poucas postagens do finado blog – tempos depois, a página do Facebook tornou-se o veículo oficial das promoções do Cafeína, além de veículo de divulgação do meu Blog e dos eventos relacionados às noites de lançamento do meu primeiro livro e, evidentemente, de inúmeras declarações de amor ao café capitaneadas incansavelmente pela Ana. De qualquer maneira, foi graças ao Cafeína que eu criei coragem para investir na escrita, sem medo de certos julgamentos por parte dos outros.

O logo da página do Cafeína no Facebook

Antes de me aventurar pela escrita de vez, precisei abraçar uma profissão “oficial”, pois se existem instituições que sempre vencem a batalha do capital elas são os boletos de pagamento. Dar conta de jornadas de trabalho que se estendiam pelos três turnos e com pouco tempo de intervalo entre aulas e reuniões só era possível graças a generosas doses de café. Quando trabalhava com aulas particulares, tinha a vantagem de ter como local de trabalho o café Starbucks ou a Cristallo do Shopping Center 3, no coração da Avenida Paulista. Não foi uma vez ou duas que eu (estabanado profissional que sempre fui) derrubei doses inteiras do líquido mágico das arábias no meu ambiente de trabalho sem chegar a queimar ou sujar nenhum dos meus alunos.

Por outro lado, a cozinha da escola onde trabalho hoje em dia se transformou em um ponto de encontro de alguns colegas de trabalho sempre dispostos a fazer “terapia de grupo”. Falando em situações terapêuticas em grupo, outra prática excelente à qual eu passei a me dedicar com três ex-companheiras de trabalho (e que se tornaram amigas muito queridas) uma ou duas vezes ao ano era marcar encontros que duravam tardes a fio. Quando achamos o local ideal para as nossas sessões de “Badmouthing Café”, o já saudoso Coffeetown Tatuapé (administrado por uma ex-aluna minha muito querida e fechado de vez por culpa da pandemia do coronavírus), não haveria limites para a nossa diversão, generosamente regada a cafés e pedaços de bolo Red Velvet. Momentos como esses, guardados carinhosamente na memória dos meus poucos afetos, nos fazem acreditar que viver vale (muito) a pena.


(É muito importante abrir parênteses para fazer uma diferenciação entre os tipos de pessoas com as quais nos sentamos em mesas de bar e em mesas de café. No momento do porre, qualquer um que estiver por perto serve para afogarmos nossas mágoas em copos de cerveja e/ou caipirinha. O mesmo não se aplica aos seres humanos com quem dividimos o prazer pela cafeína, pois confidências das mais íntimas são trocadas entre um macchiatto e um espresso – se as intimidades vazarem na mesa de um bar o culpado deve ser o álcool, jamais a cafeína. Eu me lembro claramente do sabor dos drinks servidos no Café do Ponto da Rua Augusta: bebidas inesquecíveis ao lado de pessoas que fiz questão de esquecer para todo o sempre. Por isso, a lição mais significativa que os meus quase 40 anos de idade me deram em matéria de amizades foi ser bastante seletivo em relação a QUEM devemos convidar para tomar um café conosco.)

Uma imagem da exposição Cápsula do Tempo: Identidade e Ruptura no Vestir de Ney Matogrosso

Mas, por outro lado, é sempre fundamental resgatarmos algumas memórias repletas do amor e do carinho que só os nossos amigos, irmãos que escolhemos e que nos escolhem para a vida toda. Jamais me esqueci de uma tarde em Santo Amaro, extremo sul de São Paulo, na qual Rosana Barbosa e eu tomamos um generoso café na Kopenhagen depois de visitar a exposição Cápsula do Tempo: Identidade e Ruptura no Vestir de Ney Matogrosso, que reunia vários figurinos de palco de Ney em décadas de carreira pelos palcos do Brasil e do mundo. O achocolatado deles foi um verdadeiro prêmio para nós dois depois de horas de deslocamento de um lado para o outro da cidade.



Café Santo Grão - Foto: Nilton Serra

Outro evento inesquecível para nós aqui de casa foi quando nossos compadres Gabi e Luiz Medelo se deslocaram da Zona Oeste para a Zona Leste de São Paulo às 23h de um sábado para irmos juntos ao badalado Santo Grão, nos Jardins. Para exercitar o meu (desnecessário) pedantismo, decidi deixar o café de lado a princípio para pedir uma dose de Vinho do Porto e ficar bem esfuziante com a “ousadia”. A mesa inteira caiu na gargalhada diante de minha frustração ao descobrir o tamanho MINÚSCULO do cálice no qual a bebida foi servida. Ignorar uma dose de café dentro de um templo da cafeína soa quase como uma ofensa aos amantes do líquido mágico das arábias. Recolhida a revolta, pedi uma xícara de cappuccino e rumamos de volta à ZL para fechar a noite tomando Irish Coffee na antiga Cristallo do Tatuapé, engolida pelas crises econômicas dos anos 2010 e pelas recorrentes especulações imobiliárias.

Uma madrugada na cafeteria Cristallo, do Tatuapé - Foto: Nilton Serra


Uma lembrança que eu guardo com bastante carinho é da primeira da Maria, nossa afilhada. A partir de julho de 2014, foi fundamental que o ritmo de trabalho cada vez mais frenético e alucinante diminuísse para acompanhar o crescimento de uma menininha bastante esperada um pouco mais de perto, já que ela mora a mais de 100 km de distância de São Paulo. Em uma das nossas visitas a Campinas, meus compadres sempre nos ofereceram doses bem fortes de espresso naquelas canecas esmaltadas coloridinhas que alegram o visual de qualquer cozinha e de qualquer mesa de jantar. Maricota, no meu colo, não só ficava animada com as canequinhas, como também pediu a sua para “brincar” de tomar café com os Dindos. Ao me ver sorvendo meus goles do líquido milagroso das arábias, a pequerrucha passou a me imitar também, para total alegria de Tio Vini.

Em meio às incertezas constantes da possibilidade de vivermos a normalidade das cafeterias por causa de uma pandemia e da impossibilidade de abraçarmos quem a gente gosta, a única possiblidade de prazer gerado pela cafeína que me sobrou foi o café que eu tomava de tarde durante os capítulos de Brega & Chique no Canal Viva. Entre um gole e outro, muitas das minhas lembranças da vida antes do vírus retornam como cenas do filme da minha vida que parece um passado bastante longínquo.

Uma selfie durante o isolamento acompanhado de uma xícara de café... 


Porém, como a promessa de conversas íntimas, carinhos e afetos entre xícaras de café ainda é uma promessa dependente de uma vacina ou do bom senso das pessoas, o máximo a ser feito é ligar a câmera do celular para trocar confidências com quem te vê do outro lado da telinha ou reavivar um pequeno diário de lembranças regadas a cafeína...

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