80 ANOS DE UMA LONGA ESTRADA
Roberto Carlos sempre soube aliar minha enorme admiração e o meu profundo desprezo
“Eu sei que esses detalhes vão sumir na longa estrada
Do tempo que transforma todo amor, em quase nada”
(Roberto Carlos & Erasmo Carlos, 1971)
Nunca amei e odiei e tanto um artista quanto Roberto Carlos. Amor
e ódio são dois sentimentos comuns em pessoas que a gente admira, que a gente
ama para que possamos, logo depois, desferir as piores pragas e juras de maldição.
Mas não tem jeito: meu cérebro e meu coração sempre entram em conflito
permanente quando o assunto é El Rey - apelido que eu dei para o intérprete de
“Detalhes”.
Roberto Carlos surgiu na minha memória
bem cedo: os especiais de TV veiculados pela Rede Globo desde meados dos anos
1970 eram obrigatórios lá em casa, um típico lar do subúrbio carioca. Isso sem
mencionar as fitas cassete que meu pai ouvia no carro com os clássicos do Rei.
Para uma criança / adolescente do subúrbio na década de 1990, Bob Charles não
era o entretenimento mais irresistível do mundo. Enquanto meu pai cantava
versos como “Daqui pra frente / Tudo vai ser diferente / Você tem que aprender
a ser gente / O seu orgulho não vale nada (...)” de frente para a TV e revivia
um clássico da sua juventude, tudo que me sobrava era a inevitável vontade de
bocejar até não poder mais.
Eu tinha 12 anos de idade quando Maria
Bethânia (por quem já era apaixonado) lançou o seu já clássico disco As Canções que Você Fez pra Mim (1993).
Graças àquele álbum, eu passei a ver o cantor que já tinha entoado quase tudo
em matéria de música romântica com um pouco mais de respeito. Apesar de ainda
achar que Roberto Carlos era sinônimo do que havia de mais antiquado e cafona.
Apesar de Bethânia ter feito uma aparição ao lado de El Rey cantando “Fera
Ferida” em dezembro daquele ano.
Foi no início dos anos 2000 que minha percepção sobre Roberto
Carlos mudou de vez. Graças à descoberta da Tropicália e da deferência de
Caetano e Gil pela turma da Jovem Guarda, eu passei a respeitar El Rey um
pouquinho mais. Pouco tempo depois, descobri os seus discos lançados entre 1968
e 1983 - a sua fase mais romântica, adulta, com canções apaixonadas,
confessionais, gravadas em estúdios no exterior. Foi inevitável: aos 20 e poucos
anos eu ouvia as mesmas gravações que meu pai ouvia no carro em meados dos anos
1980 e me encantava com a qualidade de clássicos como “Detalhes”, “Proposta” e
“Além do Horizonte”. Apesar desse repertório me trazer a memória do peru de
natal que comíamos no final do ano e a lembrança das canções inevitáveis
chatíssimas que viriam no pacote, passei a ouvir um pouco mais a obra de
Roberto.
Porém, toda relação conflituosa tem os seus altos e baixos e 2007
foi o ano em que as minhas predileções por El Rey caíram por terra. Como reação
ao lançamento da biografia Roberto Carlos em Detalhes, escrita pelo
competentíssimo Paulo César de Araújo (professor, jornalista e acadêmico de
primeiríssima linha), o Rei não hesitou duas vezes antes de ir aos tribunais
para tentar retirar o livro de circulação. Motivo: “invasão de privacidade”.
Roberto, um notório conservador (e apoiador da Ditadura, dizem as más línguas),
não admitiu ver certas passagens de sua vida reveladas com tanta precisão.
Paulo César, um fã confesso de Bob Charles, escreveu um texto respeitoso,
honesto, de uma beleza singular. Uma declaração de amor em forma de livro.
Mesmo assim, El Rey, do alto de sua ingratidão, não perdoou seu súdito;
processou o autor, recolheu os livros e provavelmente os queimou. Afinal de
contas, seus segredos, conquistas amorosas ou suas puxadas de tapete não
poderiam ficar expostos diante do público conservador que sempre o
apoiou.
Quando Roberto Carlos se revelou um autoritário de primeira linha,
fazendo inveja a Hitler (que queimou livros em praça pública), passei a nutrir
um ódio mortal por Vossa Majestade. Por sorte, adquirimos uma cópia do livro de
Paulo César de Araújo em janeiro de 2007, já prevendo que El Rey poderia
mobilizar seu exército de advogados para impedir que os detalhes de sua
intimidade fossem devidamente catalogados e analisados em uma biografia. Ao
somar todas as taras e manias do astro que se tornaram públicas, eu passei a
fazer da transmissão de seus especiais de TV uma oportunidade e tanto para
exercitar um dos meus maiores talentos: o de maldizer. Já que Vossa Majestade
está na pista com todos os seus TOCs, por que não tirar proveito disso?
O início da carreira de Roberto Carlos, como se sabe, foi marcado
por uma quantidade de portas fechadas e nãos de todos os tipos, já que ele
sempre foi um cara humilde, suburbano e sem uma voz de arrebatar multidões como
Cauby Peixoto ou Francisco Alves. Tentou fazer sucesso sempre indo atrás dos
ritmos que faziam sucesso na época: começou imitando Elvis Presley, depois
tentou ser um cantor de Bossa Nova e finalmente estourou nas paradas de sucesso
com o Iê-Iê-Iê. Quando sentiu que o público estava se cansando do som da Jovem
Guarda não pensou duas vezes antes de pular do barco e começar a fazer uma
música mais adulta, madura, com o objetivo de embalar as massas.
Sua guinada na virada dos anos 1960 para os 70 deu muito certo:
seus discos, sempre lançados na época do Natal, vendiam 1 milhão de cópias no
auge do sucesso. Roberto sempre soube estar na crista de onda, seguindo as
tendências musicais e o que tinha potencial de venda. Por isso, chegou a cantar
com artistas de todos os tipos e tendências. Não porque eles eram
necessariamente talentosos (muitos deles ainda são!), mas porque eles são
máquinas de fazer dinheiro! El Rey, como bom vampiro musical, precisava sempre
se reconectar com novas faixas de ouvintes.
Roberto Carlos chegou aos 80 anos de idade em abril de 2021 com a
certeza absoluta de que é o maior nome que o showbiz brasileiro já produziu em
décadas. Antes um desconhecido cantor de boates vindo do subúrbio, El Rey
conquistou o seu respeitável público (composto de classes mais baixas) com o
seu carisma exposto pela TV, para depois cantar para pagantes bem endinheirados
em estádios, casas de show e em cruzeiros com ingressos a preços
estratosféricos. Desprezado pelas elites no passado, adulado pelos mais
endinheirados e pelo mesmo povão que sempre o amou, Roberto é dono de uma obra
monumental, cujas canções mais emblemáticas - compostas em parceria com Erasmo
Carlos seu “eterno amigo de fé e (...) irmão camarada” - compõem a lista dos
maiores clássicos da nossa música.
Apesar das inúmeras decepções com a figura pública, todas essas
desilusões tendem a sumir na longa estrada. Afinal de contas, os ídolos sempre
despertam um amor sem limite dentro de cada um de nós...
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