3 de maio de 2021

TROVA # 164

 

80 ANOS DE UMA LONGA ESTRADA

Roberto Carlos sempre soube aliar minha enorme admiração e o meu profundo desprezo



Eu sei que esses detalhes vão sumir na longa estrada

Do tempo que transforma todo amor, em quase nada

(Roberto Carlos & Erasmo Carlos, 1971)

 


 

Nunca amei e odiei e tanto um artista quanto Roberto Carlos. Amor e ódio são dois sentimentos comuns em pessoas que a gente admira, que a gente ama para que possamos, logo depois, desferir as piores pragas e juras de maldição. Mas não tem jeito: meu cérebro e meu coração sempre entram em conflito permanente quando o assunto é El Rey - apelido que eu dei para o intérprete de “Detalhes”.

 

Roberto Carlos surgiu na minha memória bem cedo: os especiais de TV veiculados pela Rede Globo desde meados dos anos 1970 eram obrigatórios lá em casa, um típico lar do subúrbio carioca. Isso sem mencionar as fitas cassete que meu pai ouvia no carro com os clássicos do Rei. Para uma criança / adolescente do subúrbio na década de 1990, Bob Charles não era o entretenimento mais irresistível do mundo. Enquanto meu pai cantava versos como “Daqui pra frente / Tudo vai ser diferente / Você tem que aprender a ser gente / O seu orgulho não vale nada (...)” de frente para a TV e revivia um clássico da sua juventude, tudo que me sobrava era a inevitável vontade de bocejar até não poder mais. 

 

Eu tinha 12 anos de idade quando Maria Bethânia (por quem já era apaixonado) lançou o seu já clássico disco As Canções que Você Fez pra Mim (1993). Graças àquele álbum, eu passei a ver o cantor que já tinha entoado quase tudo em matéria de música romântica com um pouco mais de respeito. Apesar de ainda achar que Roberto Carlos era sinônimo do que havia de mais antiquado e cafona. Apesar de Bethânia ter feito uma aparição ao lado de El Rey cantando “Fera Ferida” em dezembro daquele ano.

 


Foi no início dos anos 2000 que minha percepção sobre Roberto Carlos mudou de vez. Graças à descoberta da Tropicália e da deferência de Caetano e Gil pela turma da Jovem Guarda, eu passei a respeitar El Rey um pouquinho mais. Pouco tempo depois, descobri os seus discos lançados entre 1968 e 1983 - a sua fase mais romântica, adulta, com canções apaixonadas, confessionais, gravadas em estúdios no exterior. Foi inevitável: aos 20 e poucos anos eu ouvia as mesmas gravações que meu pai ouvia no carro em meados dos anos 1980 e me encantava com a qualidade de clássicos como “Detalhes”, “Proposta” e “Além do Horizonte”. Apesar desse repertório me trazer a memória do peru de natal que comíamos no final do ano e a lembrança das canções inevitáveis chatíssimas que viriam no pacote, passei a ouvir um pouco mais a obra de Roberto.

 

Porém, toda relação conflituosa tem os seus altos e baixos e 2007 foi o ano em que as minhas predileções por El Rey caíram por terra. Como reação ao lançamento da biografia Roberto Carlos em Detalhes, escrita pelo competentíssimo Paulo César de Araújo (professor, jornalista e acadêmico de primeiríssima linha), o Rei não hesitou duas vezes antes de ir aos tribunais para tentar retirar o livro de circulação. Motivo: “invasão de privacidade”. Roberto, um notório conservador (e apoiador da Ditadura, dizem as más línguas), não admitiu ver certas passagens de sua vida reveladas com tanta precisão. Paulo César, um fã confesso de Bob Charles, escreveu um texto respeitoso, honesto, de uma beleza singular. Uma declaração de amor em forma de livro. Mesmo assim, El Rey, do alto de sua ingratidão, não perdoou seu súdito; processou o autor, recolheu os livros e provavelmente os queimou. Afinal de contas, seus segredos, conquistas amorosas ou suas puxadas de tapete não poderiam ficar expostos diante do público conservador que sempre o apoiou. 

 

Quando Roberto Carlos se revelou um autoritário de primeira linha, fazendo inveja a Hitler (que queimou livros em praça pública), passei a nutrir um ódio mortal por Vossa Majestade. Por sorte, adquirimos uma cópia do livro de Paulo César de Araújo em janeiro de 2007, já prevendo que El Rey poderia mobilizar seu exército de advogados para impedir que os detalhes de sua intimidade fossem devidamente catalogados e analisados em uma biografia. Ao somar todas as taras e manias do astro que se tornaram públicas, eu passei a fazer da transmissão de seus especiais de TV uma oportunidade e tanto para exercitar um dos meus maiores talentos: o de maldizer. Já que Vossa Majestade está na pista com todos os seus TOCs, por que não tirar proveito disso? 


 

O início da carreira de Roberto Carlos, como se sabe, foi marcado por uma quantidade de portas fechadas e nãos de todos os tipos, já que ele sempre foi um cara humilde, suburbano e sem uma voz de arrebatar multidões como Cauby Peixoto ou Francisco Alves. Tentou fazer sucesso sempre indo atrás dos ritmos que faziam sucesso na época: começou imitando Elvis Presley, depois tentou ser um cantor de Bossa Nova e finalmente estourou nas paradas de sucesso com o Iê-Iê-Iê. Quando sentiu que o público estava se cansando do som da Jovem Guarda não pensou duas vezes antes de pular do barco e começar a fazer uma música mais adulta, madura, com o objetivo de embalar as massas. 

 

Sua guinada na virada dos anos 1960 para os 70 deu muito certo: seus discos, sempre lançados na época do Natal, vendiam 1 milhão de cópias no auge do sucesso. Roberto sempre soube estar na crista de onda, seguindo as tendências musicais e o que tinha potencial de venda. Por isso, chegou a cantar com artistas de todos os tipos e tendências. Não porque eles eram necessariamente talentosos (muitos deles ainda são!), mas porque eles são máquinas de fazer dinheiro! El Rey, como bom vampiro musical, precisava sempre se reconectar com novas faixas de ouvintes.


 

Roberto Carlos chegou aos 80 anos de idade em abril de 2021 com a certeza absoluta de que é o maior nome que o showbiz brasileiro já produziu em décadas. Antes um desconhecido cantor de boates vindo do subúrbio, El Rey conquistou o seu respeitável público (composto de classes mais baixas) com o seu carisma exposto pela TV, para depois cantar para pagantes bem endinheirados em estádios, casas de show e em cruzeiros com ingressos a preços estratosféricos. Desprezado pelas elites no passado, adulado pelos mais endinheirados e pelo mesmo povão que sempre o amou, Roberto é dono de uma obra monumental, cujas canções mais emblemáticas - compostas em parceria com Erasmo Carlos seu “eterno amigo de fé e (...) irmão camarada” - compõem a lista dos maiores clássicos da nossa música. 

 

Apesar das inúmeras decepções com a figura pública, todas essas desilusões tendem a sumir na longa estrada. Afinal de contas, os ídolos sempre despertam um amor sem limite dentro de cada um de nós...

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