SAUDADE:
palavra que traduz um sentimento agridoce de algo que já não temos mais
conosco. Palavra muito difícil de ser traduzida para outros idiomas, bem
difícil de explicação para quem não é nativo do idioma português. Dizem que a saudade
é síndrome de quem vive no passado, enquanto a ansiedade é pavor do futuro e a
depressão é o pânico do presente. Talvez faça sentido, porque sou alguém
ansioso por natureza e já vivi episódios graves de depressão. E conheço várias
pessoas que se encaixam nessa lógica.
Porém,
não podemos nos esquecer jamais de que viver é um jogo muito mais complexo do
que a lógica comum e é uma ação que requer, acima de tudo, CORAGEM. Coragem de
se expor, coragem de tirar as palavras do pensamento e das conversas íntimas
para leva-las para o papel e depois para o ciberespaço. Coragem de desafiar o
senso comum imposto por um pensamento conservador e tacanho. Coragem de ser
diferente em um contexto que exige que todo mundo seja e aja de maneira igual.
Apesar
do que sugere o título do texto que você está lendo, estou longe de ser um
entusiasta do que já passou. Guardo com carinho muitas lembranças de outrora, tenho
outras memórias bem preservadas na gaveta do rancor. Tenho mais animação pelo
futuro, considerando o que ele pode nos trazer de bom e não tão bom assim. Faço
do meu presente a possibilidade de construir um futuro melhor para mim e para
mais alguns. Escrevo tudo isso para dizer que não sinto uma ponta de saudade do
passado que eu vivi, mas invejo profundamente o passado que eu não vivi. A
juventude anárquica e desbundada dos anos 1960 e 1970 e muitos dos eventos
político-culturais que foram promovidos para combater a caretice brasileira
nossa de todo dia.
Caso
queiram falar de mim e do que eu escrevo, digam apenas o seguinte: se o passado
que me cabe e não me cabe mais são estrelas no espaço sideral, podem me chamar
de “astronauta da saudade”, pois meus textos transitam por corpos celestes e
resgatam as memórias boas que vivi e as lembranças que gostaria de ter tido.
Caso queiram falar de mim e do que eu escrevo, digam também que sou um amigo da
arte, da ciência e do conhecimento. Falo e escrevo sobre coisas “fora de moda”:
“livros, discos, vídeos à mancheia” e outras coisinhas que o sujeito comum não
gosta ou não aprecia mais. Sempre contra a corrente, contra o senso comum e a
velha pasmaceira.
Cada
texto que escrevo vai muito além do desejo de ser lido ou do mero instinto de
me comunicar por meio de palavras para velhos conhecidos ou um leitor cujo
rosto eu não conheço. Cada postagem em meu blog
sempre foi uma maneira de procurara a beleza no presente com o auxílio da
música. Em algumas ocasiões fui bem-sucedido, em outras nem tanto. No resumo de
tudo, foi mantido o exercício da escrita como um ofício prazeroso e com a
garantia de que erros e acertos estão devidamente registrados, apesar de
levemente revisados.
Já
que tornar público o que há de mais íntimo por parte do pensamento é o fato que
está diante de seus olhos, aproveito para fazer um convite para você que chegou
até aqui: ouça os textos, leia os discos e as canções que se encontram por
aqui. O blog foi uma viagem e tanto.
Quem sabe o livro seja também. Por isso, junte-se a mim e faça uma boa viagem
pelas letras e sons que reuni aqui depois de tantos anos...
Do tempo
em que escrevíamos cartas, as pessoas davam uma importância gigantesca a papel,
caneta, envelope e selos para que notícias, confissões e juras de amor e de
ódio pudessem ser transmitidas para o destinatário que fosse. Com a chegada da Internet, das redes sociais e dos smart phones, tamanho encantamento se
desfez e as correspondências perderam a sua intensidade: o avanço das
tecnologias provocou uma mudança fatal da relação dos humanos com as palavras e
as longas correspondências tornaram-se mais um resquício do passado. Quase toda
comunicação relacionada às correspondências se tornou restritamente técnico e
objetivo, as confissões mais íntimas viraram “textões” ou foram comprimidas em
meros 140 caracteres no Twitter.
A escolha de um blog para dar conta dos
pensamentos e memórias que me habitam poderiam ser as crônicas que eu sempre
sonhei na coluna do jornal, no portal da Internet
ou (quem sabe?) nas páginas de um livro. A escrita que fiz por anos a fio tem
sido além de um diário sentimental ou de um journal
de críticas e pensamentos avulsos: todos os textos que passaram por aqui são,
de certa forma, cartas. Enquanto as palavras do ciberespaço, do jornal e do
livro possuem um destinatário específico, certeiro, as minhas correspondências
são “longas cartas pra ninguém”, ou melhor, quase ninguém.
Em uma entrevista de fevereiro de 1977,
Clarice Lispector comentou a respeito de um dos assuntos mais discutidos entre
literatos: o ato de escrever. Ao ser indagada sobre sua rotina de
trabalho, Clarice foi taxativa ao dizer que nunca tinha sido uma escritora
profissional e que só se dedicava à Literatura quando queria. Sua afirmação desconcertou
por completo seu entrevistador e o público, já que a autora de A Hora da Estrelae Laços de Família já tinha
publicado vários romances, contos e textos na grande imprensa até então. Apesar
de eu sempre ter nutrido um enorme amor pela escrita (queria ser escritor desde
os sete anos de idade!), nunca consegui me sentir um profissional das letras
por dois motivos: 1) o anonimato e o meu talento permanente para ser um anônimo;
2) o fato de ter uma profissão que exige tempo e dedicação. Não me satisfaço
com o amadorismo, tampouco com o anonimato. Porém, escrever como alternativa
foi a solução possível para que eu extravasasse tudo o que eu gostaria de ser,
mas que a vida não me permite que eu seja por conta de compromissos e responsabilidades...
Confessar uma série de coisas nas
páginas do papel e pela Internet afora é uma tarefa incomum para alguém que age
com a discrição do anonimato. Era uma maneira de compreender a natureza dos
fatos e suas consequências. Era um jeito de expressar a pouca saudade que tenho
do passado, a vontade intensa de viver o presente e a loucura insustentável de
ter o futuro nas mãos. Ou talvez uma forma de esconder minha própria
mediocridade e dar a ela alguma espécie de status.
Ou nenhuma das respostas anteriores mesmo, afinal há perguntas para as quais
não temos solução.
No entanto, ainda tenho a breve
esperança de que cada texto que escrevi para este blog ou para a coluna de jornal dos meus sonhos possa fazer sentido
para alguém, afinal foram mais de 115 mil acessos em nove anos de atividade. Tal
qual Brás Cubas, um dos personagens mais célebres da ficção de Machado de
Assis, também não tive filhos e não transmiti (até então) a nenhuma criatura o
legado de minha miséria. Todavia, deixo vários escritos para a posteridade, um
livro publicado e a vontade imensa de vida dentro de mim, apesar da barbárie
que se abateu no Brasil e pelo mundo a partir de 2020.
Faz escuro, mas escrevo e também canto.
O mundo pode fazer qualquer tipo de acusação contra mim, menos uma: eu sempre
tive histórias para contar. E ainda terrei enquanto tiver um papel, uma caneta
e um lápis nas mãos. Porque viver apenas não basta para mim: se eu puder viver
tendo a possibilidade de escrever já é algo que me deixa mais feliz. E ser
feliz em pleno século XXI é um dos maiores desafios que se apresentam para os
seres humanos, especialmente para os que vivem no Brasil...
Roberto Carlos sempre soube aliar minha enorme admiração e o
meu profundo desprezo
“Eu sei que esses detalhes vão sumir na longa estrada
Do tempo que transforma todo amor, em quase nada”
(Roberto Carlos & Erasmo Carlos, 1971)
Nunca amei e odiei e tanto um artista quanto Roberto Carlos. Amor
e ódio são dois sentimentos comuns em pessoas que a gente admira, que a gente
ama para que possamos, logo depois, desferir as piores pragas e juras de maldição.
Mas não tem jeito: meu cérebro e meu coração sempre entram em conflito
permanente quando o assunto é El Rey - apelido que eu dei para o intérprete de
“Detalhes”.
Roberto Carlos surgiu na minha memória
bem cedo: os especiais de TV veiculados pela Rede Globo desde meados dos anos
1970 eram obrigatórios lá em casa, um típico lar do subúrbio carioca. Isso sem
mencionar as fitas cassete que meu pai ouvia no carro com os clássicos do Rei.
Para uma criança / adolescente do subúrbio na década de 1990, Bob Charles não
era o entretenimento mais irresistível do mundo. Enquanto meu pai cantava
versos como “Daqui pra frente / Tudo vai ser diferente / Você tem que aprender
a ser gente / O seu orgulho não vale nada (...)” de frente para a TV e revivia
um clássico da sua juventude, tudo que me sobrava era a inevitável vontade de
bocejar até não poder mais.
Eu tinha 12 anos de idade quando Maria
Bethânia (por quem já era apaixonado) lançou o seu já clássico disco As Canções que Você Fez pra Mim(1993).
Graças àquele álbum, eu passei a ver o cantor que já tinha entoado quase tudo
em matéria de música romântica com um pouco mais de respeito. Apesar de ainda
achar que Roberto Carlos era sinônimo do que havia de mais antiquado e cafona.
Apesar de Bethânia ter feito uma aparição ao lado de El Rey cantando “Fera
Ferida” em dezembro daquele ano.
Foi no início dos anos 2000 que minha percepção sobre Roberto
Carlos mudou de vez. Graças à descoberta da Tropicália e da deferência de
Caetano e Gil pela turma da Jovem Guarda, eu passei a respeitar El Rey um
pouquinho mais. Pouco tempo depois, descobri os seus discos lançados entre 1968
e 1983 - a sua fase mais romântica, adulta, com canções apaixonadas,
confessionais, gravadas em estúdios no exterior. Foi inevitável: aos 20 e poucos
anos eu ouvia as mesmas gravações que meu pai ouvia no carro em meados dos anos
1980 e me encantava com a qualidade de clássicos como “Detalhes”, “Proposta” e
“Além do Horizonte”. Apesar desse repertório me trazer a memória do peru de
natal que comíamos no final do ano e a lembrança das canções inevitáveis
chatíssimas que viriam no pacote, passei a ouvir um pouco mais a obra de
Roberto.
Porém, toda relação conflituosa tem os seus altos e baixos e 2007
foi o ano em que as minhas predileções por El Rey caíram por terra. Como reação
ao lançamento da biografia Roberto Carlos em Detalhes, escrita pelo
competentíssimo Paulo César de Araújo (professor, jornalista e acadêmico de
primeiríssima linha), o Rei não hesitou duas vezes antes de ir aos tribunais
para tentar retirar o livro de circulação. Motivo: “invasão de privacidade”.
Roberto, um notório conservador (e apoiador da Ditadura, dizem as más línguas),
não admitiu ver certas passagens de sua vida reveladas com tanta precisão.
Paulo César, um fã confesso de Bob Charles, escreveu um texto respeitoso,
honesto, de uma beleza singular. Uma declaração de amor em forma de livro.
Mesmo assim, El Rey, do alto de sua ingratidão, não perdoou seu súdito;
processou o autor, recolheu os livros e provavelmente os queimou. Afinal de
contas, seus segredos, conquistas amorosas ou suas puxadas de tapete não
poderiam ficar expostos diante do público conservador que sempre o
apoiou.
Quando Roberto Carlos se revelou um autoritário de primeira linha,
fazendo inveja a Hitler (que queimou livros em praça pública), passei a nutrir
um ódio mortal por Vossa Majestade. Por sorte, adquirimos uma cópia do livro de
Paulo César de Araújo em janeiro de 2007, já prevendo que El Rey poderia
mobilizar seu exército de advogados para impedir que os detalhes de sua
intimidade fossem devidamente catalogados e analisados em uma biografia. Ao
somar todas as taras e manias do astro que se tornaram públicas, eu passei a
fazer da transmissão de seus especiais de TV uma oportunidade e tanto para
exercitar um dos meus maiores talentos: o de maldizer. Já que Vossa Majestade
está na pista com todos os seus TOCs, por que não tirar proveito disso?
O início da carreira de Roberto Carlos, como se sabe, foi marcado
por uma quantidade de portas fechadas e nãos de todos os tipos, já que ele
sempre foi um cara humilde, suburbano e sem uma voz de arrebatar multidões como
Cauby Peixoto ou Francisco Alves. Tentou fazer sucesso sempre indo atrás dos
ritmos que faziam sucesso na época: começou imitando Elvis Presley, depois
tentou ser um cantor de Bossa Nova e finalmente estourou nas paradas de sucesso
com o Iê-Iê-Iê. Quando sentiu que o público estava se cansando do som da Jovem
Guarda não pensou duas vezes antes de pular do barco e começar a fazer uma
música mais adulta, madura, com o objetivo de embalar as massas.
Sua guinada na virada dos anos 1960 para os 70 deu muito certo:
seus discos, sempre lançados na época do Natal, vendiam 1 milhão de cópias no
auge do sucesso. Roberto sempre soube estar na crista de onda, seguindo as
tendências musicais e o que tinha potencial de venda. Por isso, chegou a cantar
com artistas de todos os tipos e tendências. Não porque eles eram
necessariamente talentosos (muitos deles ainda são!), mas porque eles são
máquinas de fazer dinheiro! El Rey, como bom vampiro musical, precisava sempre
se reconectar com novas faixas de ouvintes.
Roberto Carlos chegou aos 80 anos de idade em abril de 2021 com a
certeza absoluta de que é o maior nome que o showbiz brasileiro já produziu em
décadas. Antes um desconhecido cantor de boates vindo do subúrbio, El Rey
conquistou o seu respeitável público (composto de classes mais baixas) com o
seu carisma exposto pela TV, para depois cantar para pagantes bem endinheirados
em estádios, casas de show e em cruzeiros com ingressos a preços
estratosféricos. Desprezado pelas elites no passado, adulado pelos mais
endinheirados e pelo mesmo povão que sempre o amou, Roberto é dono de uma obra
monumental, cujas canções mais emblemáticas - compostas em parceria com Erasmo
Carlos seu “eterno amigo de fé e (...) irmão camarada” - compõem a lista dos
maiores clássicos da nossa música.
Apesar das inúmeras decepções com a figura pública, todas essas
desilusões tendem a sumir na longa estrada. Afinal de contas, os ídolos sempre
despertam um amor sem limite dentro de cada um de nós...
Relembrando Judy
at Carnegie Hall 60 anos depois...
“The world is a stage
The stage is a world
of entertainment!”
(Arthur Schwartz & Howard Dietz)
“Weep no more, my lady
Sing that song again for me”
(Jean Schwartz, Sam M. Lewis and Joe
Young)
Foi em uma noite de domingo como
qualquer outra. Uma mulher de 38 anos e de 1 metro e 51 centímetros subiu ao
palco do Carnegie Hall, uma das casas de espetáculo mais prestigiadas do mundo,
para mais uma apresentação ao vivo de seu show. No setlist havia canções de amor, de alegria, de tristeza, de
desilusão, desespero e até alguns versos que nos trouxessem um toque de leve
esperança. O espetáculo seria um evento qualquer se a moça em questão não
atendesse pelo nome de Frances Ethel Gumm, mais conhecida entre nós com o nome
artístico de Judy Garland.
Quando Judy Garland subia em cima de um
palco ela deixava de ser uma mulher frágil e insegura de 1,51 m para se
transformar em uma verdadeira gigante. Ao interpretar os clássicos de Harold
Arlen, Johnny Mercer, Richard Rodgers, Lorenz Hart, Howard Dietz, Dorothy
Fields, Jimmy McHugh, dos irmãos George e Ira Gershwin e tantos outros
baluartes da canção norte-americana, ela parecia ser bem mais velha do que os
38 anos que ela tinha naquela noite. Suas apresentações ao vivo eram repletas
de intensidade, de muita energia, sarcasmo e bom humor e quem estivesse em sua
plateia garantia que um show de Judy era sempre um evento inesquecível. Ela
cantava cada nota dando o máximo de sentimento que sua voz pudesse oferecer
para o ouvinte, a ponto de que poderia desfalecer no minuto seguinte. Seus
admiradores a amavam por causa disso, outros nem tanto, pois achavam tudo
aquilo um tanto over.
Judy precisou de um pouco mais de duas horas para escrever seu
nome na história do entretenimento com a apresentação que deu origem ao
álbum Judy at Carnegie Hall, lançado como LP duplo em julho de 1961. O disco fez um enorme
sucesso na época e foi o primeiro trabalho gravado por uma mulher a ganhar o
Grammy de Melhor Álbum do Ano e é o
registro oficial do que batizaram de “a maior noite na história do show
business”. Ao ouvi-lo seis décadas depois de seu surgimento, ainda podemos
sentir todo o magnetismo de uma das maiores artistas que o mundo já assistiu.
Apesar do êxito comercial de seu álbum ao vivo, Judy Garland já
tinha garantido seu nome na galeria das maiores lendas de Hollywood ao dar vida
à jovem Dorothy Gale em O Mágico de Oz (1939). Ao ser
alçada para o estrelato, seguiram-se os percalços: a celebridade, o vício em
álcool e drogas, os relacionamentos fracassados, seus três filhos e vários
escândalos. Tal qual outras lendas de seu tempo como Elizabeth Taylor, Marilyn
Monroe ou Carmen Miranda, Judy foi tragada pelo star system que
fez dela um dos nomes mais importantes do entretenimento do século XX.
Infelizmente, o sucesso foi o combustível da maior parte de sua tragédia.
Porém, sua arte sempre falou mais alto.
Considerada um dos maiores ícones da comunidade LGBTQIA+, Judy
Garland influenciou uma quantidade significativa de astros e estrelas de outras
gerações. Rufus Wainwright, cantor canadense e ícone gay, é tão aficcionado pela
artista que chegou a gravar um álbum ao vivo refazendo o roteiro de Judy at Carnegie
Hall. Liza Minnelli, sua filha mais velha,
seguiu os passos da mãe e se tornou uma cantora e atriz respeitável. Barbra
Streisand, que já possui seis décadas de serviços prestados ao entretenimento,
sempre foi fã da intérprete de “Over the Rainbow”. Por aqui no Brasil, temos em
Maria Bethânia uma devota confessa da arte de Ms. Garland. É mais do que
notório que Judy deixou um legado importante para seus fãs e sucessores quando
morreu, em julho de 1969. Artistas de sua estatura são cada vez mais raras nos
tempos atuais. Por isso, jamais devemos nos esquecer dela e de tudo de bom que
ela já fez.
Por isso, 23 de abril de 1961 deve ser uma data que sempre deve
ser lembrada como uma das noites mais importantes da história do entretenimento.
Judy at Carnegie Hall traz uma artista com toda a sua vivacidade em cena..
Uma cantora e atriz que desafia as leis da física, da lógica e da emoção ao
arriscar as tonalidades mais agudas para transmitir o sentimento de cada verso
que ela cantava em cima de um palco. Uma aula de interpretação musical que não
deve ser esquecida com o passar das décadas, apesar da vontade de relegar a
arte à ignorância e ao ostracismo...
Por
conta de uma pandemia que já ceifou quase 240 mil vidas em nosso país, assisti
algo inédito em 40 anos de passagem por este mundo: mês de fevereiro sem cores,
sem alegria, sem irreverência, sem batucada nas ruas. Para não deixar o período
de Momo passar em branco, a passarela do samba, localizada na Avenida Marquês
de Sapucaí, ficou iluminada com as cores das agremiações que levam alegria para
tantas pessoas do período entre a sexta-feira de carnaval e a quarta-feira de
cinzas. Mês de fevereiro sem carnaval é como mês de junho sem Festa Junina ou
mês de dezembro sem Papai Noel: não tem a menor graça!
Apesar das restrições, muitos
resolveram aproveitar a oportunidade para vestir uma fantasia, resgatar uma
maquiagem mais colorida ou uma peruca velha e ficar curtindo os festejos de
casa mesmo. A TV Globo aproveitou o fato de que há mais pessoas dentro de seus
lares para reprisar desfiles marcantes das escolas de samba do Rio de Janeiro e
de São Paulo, para os saudosos de antigos carnavais. Neste ano, aproveitei mais
uma vez a oportunidade para ficar recolhidos com meus pensamentos, manias e
obsessões para tentar colocar a cabeça no lugar. Em ocasiões como esta, as
memórias acabam resgatando momentos nos quais a vida ainda pode valer a pena.
Como bom carioca que sou – fui
nascido e criado com a vivência de sambas-enredo e escolas de samba dentro de
casa –, sempre mantive na memória os desfiles das escolas de samba do Rio de
Janeiro. Eu tinha acabado de completar 8 anos de idade quando Joãosinho Trinta,
na época carnavalesco da Beija-Flor de Nilópolis, tentou levar um Cristo
mendigo para a passarela do samba para compor o enredo “Ratos e Urubus, larguem
a minha fantasia!” em fevereiro de 1989. Estarrecida com a ousadia de Joãosinho
(onde já se viu contar uma parte de nossa história utilizando um Jesus em
farrapos?), a Igreja Católica armou uma enorme confusão, censurou o desfile e o
carnavalesco quase foi parar na cadeira por conta da ousadia de sua arte.
Não
me lembro de quase nada daquele desfile, mas o que vi e mal entendi daquela
passagem da Beija-Flor pela Avenida Marquês de Sapucaí está disponível nos
arquivos das emissoras de televisão e no YouTube
para a nossa imensa alegria. Censurado em um Brasil que reaprendia a ser
democrático, Joãosinho Trinta resolveu não deixar barato: levou o Cristo para a
passarela do samba, porém coberto de sacos de lixo com os dizeres “MESMO
PROIBIDO, OLHAI POR NÓS!”, gerando uma verdadeira comoção e causando ainda mais
rebuliço diante do moralismo que nos censura até hoje.
Outro desfile que ficou guardado na
memória do inconsciente coletivo – e eu me incluo entre essas pessoas, porque
eu lembro bem! – foi o lendário desfile da Estação Primeira de Mangueira entre
o domingo e a segunda-feira de carnaval trinta anos depois da barulhenta e
controversa passagem da Beija-Flor pela mesma passarela do samba, em 2019.
Frustrado com uma passagem mediana da Portela pela Avenida Marquês de Sapucaí
(naquele ano, a homenageada era Clara Nunes, uma de suas portelenses mais
ilustres e uma das cantoras preferidas daqui de casa), já estava me preparando
para desligar a TV e ir dormir quando eu vi a apresentação da agremiação de
Cartola no seu início.
Duas ou três pessoas me advertiram a
respeito da beleza do samba-enredo da Mangueira para o ano de 2019 e eu não dei
o menor crédito por pura implicância, provavelmente. Mesmo assim, decidi dar
uma chance aos mangueirenses e fiz questão de ficar acordado às 4 horas da
manhã para assistir o que eles tinham preparado para a Marquês de Sapucaí. Em
menos de cinco minutos fui completamente arrebatado pela beleza de um dos
desfiles de carnaval mais inesquecíveis da minha vida. Estava diante de um
samba-enredo imbatível: refrão encantador e fácil de ser assimilado, belas
fantasias e alegorias, irreverência mil e uma proposta (ousadíssima) de
recontar a história do Brasil tão bem contada pelos brancos bem-sucedidos e
muito mal contada sob a perspectiva de negros, indígenas, pobres e outros que
nunca compactuaram com as artimanhas do poder oficial.
Fazer o brasileiro pensar em coisa
séria na madrugada de uma segunda-feira de Carnaval e reverenciar heróis vivos
e saudosos é o maior legado que a Estação Primeira de Mangueira deixou para
todos naquele desfile de 2019. Além de deixar registrado em versos e sons a
luta de nomes como Leci Brandão, Zuzu Angel, Jamelão, Mussum, Dandara,
Aqualtune, Chunhambebe, Luísa Mahin, Tereza de Banguela, Mariana Crioula,
Carolina de Jesus, Aleijadinho, Marielle Franco e tantos outros para que
possamos ter a oportunidade de conhecer quem são os verdadeiros lutadores da
nossa pátria. O carnaval de sambódromo, essa arte tão elitizada e tomada pela
arrogância das celebridades, dos bicheiros e dos pagantes dos custosos
camarotes vai de volta para as mãos do povo que o criou.
Leandro Vieira, carnavalesco da
Estação Primeira de Mangueira e um excelente discípulo de Mestre Joãosinho
Trinta, decidiu ignorar reis, rainhas, escravocratas e bandeirantes que
mancharam as páginas da história de nosso país de sangue, suor e opressão para
resgatar a memória daqueles que não puderam ver seus nomes, fotos ou
ilustrações nas páginas dos livros. Seguindo a cartilha de um dos maiores
mestres da história do carnaval, Leandro fez questão de encerrar o desfile da
Mangueira com uma bandeira do Brasil estilizada de verde e rosa e com os
dizeres “Índios, Negros e Pobres” no lugar dos dizeres “Ordem e Progresso” que
ocupam o símbolo da nossa soberania. Os excluídos pela “história oficial”
receberam uma consagração merecida 519 anos depois da “descoberta” da Terra do
Carnaval. Contar as memórias de nosso país sob a ótica de mulheres, de
indígenas e de torturados pela Ditadura Militar em tempos de retrocesso
democrático é, sobretudo, um gesto de ousadia e coragem tal qual Joãosinho fez
à frente da Beija-Flor de Nilópolis trinta anos antes.
A folia não existe apenas para o
mero desfrute e entretenimento dos brasileiros nas ruas, avenidas e passarelas
do samba: ela existe também para que as pessoas possam demonstrar o
descontentamento coletivo perante o poder oficial, por isso a ira de nossos
governantes contra o carnaval é permanente. A sátira e a resistência são as
armas dos oprimidos para sobreviver às misérias e aos desmandos do dia-a-dia. Por
isso, não me surpreendi nem um pouco ao ver os defensores do atual governo,
conservador e retrógado por excelência, amaldiçoando o não-carnaval de 2021
como se fosse um castigo divino por uma imagem de um Jesus Cristo sendo
torturado por um diabo estilizado.
Ainda
precisamos de muitos Joãosinhos e Leandros que tenham a coragem de colocar os
tabus para desfilarem nas passarelas do samba para espantar a caretice e a
desonestidade daqueles que nos (des)governam. Para desgosto e desespero da
turba conservadora e mesquinha, em 2022 voltaremos para fazer um dos carnavais
mais bonitos da história, dignos de fazer parte das “memórias de fevereiro” que
fazem parte do inconsciente coletivo de muitas pessoas.