ALGUNS SEGREDOS MUSICAIS
AO SOM DE ZÉLIA DUNCAN
Para
Nilton Serra, no dia de seus 35 anos
“You
taught me precious secrets of the truth withholding nothing
You came out in front and I was hiding
But now I’m so much better
And if my words don’t come together
Listen to the melody
‘Cause my love is in there hiding
I love you in a place where there’s no space in time
I love you for in my life
You are a friend of mine
And when my life is over
Remember when we were together
We were alone and I was singing a song for you.”
(Leon Russell, 1970)
“Primeira
vez que eu te vi
Meu
coração não fez clique
Se
ouvi ou vi, não vivi
Seu
pique seu trique trique
Não
vi sushi, sashimi
Nem
Eros nem Afrodite
Primeira
vez que eu te vi
Primeiro
vi seus limites”
(Christiaan Oyens & Itamar
Assumpção, 2005)
Certa vez o sábio e saudoso poeta Torquato Neto escreveu: “Há várias
maneiras de se cantar e fazer música brasileira: Gilberto Gil prefere todas”.
Se o co-autor de “Geleia Geral” tivesse escrito um texto sobre Zélia Duncan,
ele diria que ela preferiria todas e mais uma. Não me recordo de nenhum artista
cujo trabalho musical seja tão marcado pela diversidade quanto o de Zélia. É
uma cantora, compositora e intérprete de uma coragem e dignidade
impressionantes, qualidades raríssimas de ver por aí...
Devo confessar publicamente que demorei um bocado para fazer parte da
festança musical de Dona ZD. Tenho alguns motivos: 1) minha dificuldade em
compreender que o repertório dela era muito além da “Catedral” ou os lençóis do
reggae que lhe fizeram famosa pelo Brasil inteiro; 2) uma boa dose de ciúmes
desta nobre escorpiana; afinal de contas, o aquariano com ascendente em touro
que vos escreve sempre demandou por atenção e exclusividade...
Nilton Serra, outro escorpiano obstinado e insistente, me ensinou não só
a gostar do trabalho de Zélia, como também me ensinou a admirá-la
profundamente. Aprendi que ser famoso e ser reconhecido não é fruto de mera
celebridade ou dos reflexos dos louros colhidos de um sucesso na trilha sonora de uma das novelas de
Silvio de Abreu. É resultado de muito trabalho, de várias
parcerias e do amor de “um milhão de amigos”. Zélia Duncan é uma operária da
canção, uma formiguinha sempre disposta a espalhar o seu canto por toda a
parte. Despojada de quaisquer atributos ou cacoetes das “Divas da Música
Brasileira”, compõe, produz, toca violão, guitarra, bandolim e canta com um dos
registros vocais graves dos mais belos que eu já ouvi.
A primeira vez em que eu vi Zélia cantando ao vivo foi durante a
gravação de um DVD ao vivo de Rita Lee, em 2004. Interpretou “Pagu” lado a lado
da Rainha do Rock brasileiro e teve de fazer o número duas vezes para que a
filmagem ficasse perfeita. Melhor para nós, mortais espectadores, que pudemos
presenciar uma das parcerias mais bacanas da música nacional duas vezes em uma
mesma noite. Nada mal para um carioca que sempre morreu de amores por São Paulo
e viajava para a Terra da Garoa durante os feriados prolongados. Apesar de ter gostado
muito, eu ouvia aquela voz grave com uma certa desconfiança...
Anos depois, já morando em São Paulo, fomos curtir um sábado em outra
gravação de DVD, desta vez de Pré-Pós-Tudo-Bossa-Band,
de Zélia. Tudo transcorria muito bem quando senti algo muito estranho dentro da
boca ao comer um salgadinho. Resultado: tinha quebrado um dente minutos antes
de chegar ao Auditório Ibirapuera. Por não se tratar de um dente da frente e
por não estar sentindo nenhuma dor (apenas um desconforto gigantesco!),
decidimos ir para o show mesmo assim. Assistimos Zélia Duncan em um dos
momentos mais inspirados e produtivos de sua carreira diretamente da segunda fila do auditório e interpretando
compositores de primeiríssima linha como Itamar Assumpção, Alice Ruiz e
Paulinho Moska com muita competência e à frente de uma banda de músicos
extraordinários.
Como toda filmagem tem lá os seus imprevistos, ficamos dentro da sala de
espetáculos até 3 ou 4 da madrugada com ZD repetindo números de seu setlist, ralhando (coberta de razão!) com
membros da equipe técnica para que o trabalho se concluísse a tempo dela não se
sentir obrigada a servir o café da manhã para os heróicos espectadores ainda presentes
no Auditório Ibirapuera. Ah, se todas as cantoras brasileiras tivessem este
tipo de bom humor ao enfrentar imprevistos em cima do palco...
Poucos anos depois, retornamos a mais uma gravação de CD e DVD ao vivo
no Auditório Ibirapuera: desta vez, em Amigo
é Casa, no qual Zélia dividia o espetáculo com a cantora Simone. Duas
noites de shows, duas noites virados na rua esperando pela abertura das
catracas do metrô às 5 da manhã, pois (pobres e fodidos que éramos na época)
não tínhamos carro ou sequer dinheiro para pegar um táxi para casa. Acima de
tudo, nós éramos jovens de vinte e poucos anos felizes e topávamos qualquer
noitada na rua ao lado de nossos queridos amigos. A formiga e a cigarra da
música brasileira foram a trilha sonora daqueles tempos – canções de
Gonzaguinha, Roque Ferreira, Guilherme Arantes e tantos outros fizeram a nossa
cabeça e abriram ainda mais os meus ouvidos para o trabalho de Zélia Duncan.
Foi graças ao excelente disco Pelo
Sabor do Gesto que Zélia Duncan finalmente conquistou este chato e exigente
coração! Depois de ouvir todos os seus discos, creio que foi em 2009 que ZD
achou o auge de sua forma – suas parcerias, sua voz e o seu repertório me
atingiu em cheio. Fiquei um pouco triste por ela ter mudado a letra de “Ambição”
– uma das minhas favoritas de Rita Lee –, mas adorei a escolha de uma canção
obscura do cancioneiro da Rainha do Rock brasileiro. “Tudo Sobre Você” ficou
impregnada nos meus ouvidos por um bom tempo. “Esporte Fino Confortável”,
parceria de Zélia com Chico César, serve como piada interna entre nós e alguns
de nossos amigos até hoje.
E foi graças ao show baseado em Pelo
Sabor do Gesto que Nilton e eu cometemos a maior maluquice de toda a nossa
história de frequentadores de shows: ir de São Paulo até Niterói para assistir
a mais uma gravação de DVD de Zélia - dois shows em um mesmo dia no Teatro
Municipal de Nikiti (um às 15h e outro às 18h), uma verdadeira maratona musical. Quando vi Lady Duncan linda e
esplendorosa dentro de um vestido colorido de Ronaldo Fraga no palco daquele
teatro aconchegante, deixei todo o mau humor da viagem de lado e curti aquele
dia de domingo. Depois de algumas emoções e surpresas, voltamos para São Paulo,
exaustos como nunca.
Fiquei encantado e emocionado com Tudo
Esclarecido, CD e show no qual Zélia interpretava as canções do
indefectível Itamar Assumpção. Entendi como o Jimi Hendrix conseguia ser um
artista de inteligência e intensidade através da gigantesca reverência e
competência de ZD – ninguém conseguirá me convencer da inexistência de
outra gravação mais bela para “Noite Torta” do que a da filha de
D. Loïse Duncan. Na mesma época, tivemos a oportunidade de vislumbrar a obra de
Luiz Tatit com outros olhos através de ToTatiando. Zélia Duncan conseguiu a
improvável façanha de deixar Tatit menos hermético através de uma perspectiva
encantadoramente dramática de seu cancioneiro. Confesso que perdi as contas de
quantas vezes assisti a este espetáculo, como também nem consigo me lembrar de
quantas vezes já fui ao seu camarim e fomos recebidos com um sorriso largo que
não parece ter mais fim.
Os excessos de compromissos profissionais, somados a algumas chegadas e
partidas familiares nos tiraram de circulação por um bom tempo. Consequência direta:
deixamos de acompanhar as gravações de DVD mais recentes de ZD. Por outro lado,
fiquei bem contente quando surgiu a oportunidade de ver um show inédito de
Zélia Duncan depois de um bom tempo. A felicidade dobrou quando soube que o
espetáculo era baseado em Quando o Mundo
Acabar, CD no qual Lady Duncan nos concedeu o luxo de ouvirmos alguns
sambas consagrados e outros de sua própria autoria. No entanto, estávamos bem
longe do palco e acomodados nas últimas cadeiras do teatro do SESC Vila
Mariana. Deixei-me surpreender ao ver a cortina se abrir e me deparar com a
artista saindo justamente do nosso lado para dar início a um espetáculo alegre
e inteligente.
Zélia Duncan nunca tinha soado tão bela e jovial em cima de um palco
para mim: em menos de duas horas de show, meu coração batucou com cavacos e
cuícas que choravam com elegância. A moça em cena nem se parecia com aquela que
substituiu Rita Lee no grupo Os Mutantes entre 2005 e 2007, com quem eu ralhava tanto, mas fui assistir no Parque da Independência mesmo assim... Minha implicância com
ZD se transformou em uma admiração confessa, acrescida de uma inveja branca sem
tamanho: como alguém que consegue fazer tanta coisa boa em termos de música tem
a capacidade de escrever crônicas tão belas para o jornal O Globo toda sexta-feira?!
Aqui estão algumas de nossas historinhas tão particulares e preciosas
com Zélia Duncan, a artista que mais tem contribuído para a intimidade dos nossos
sons de alguns anos para cá. Existem outras anedotas a serem ditas, mas é
melhor deixá-las para outro texto por questões de espaço – afinal, o amor e a
admiração por ZD ultrapassam quaisquer limites. Quando eu conseguir me exprimir
em palavras com um décimo da classe e da competência de Lady Duncan, eu escrevo
outra crônica. "Por hoje é só"...
“Nem que eu contasse as gotas do mar,
todos os dias
Pra me acalmar do que eu nunca fiz
Nem que eu parasse as ondas do ar, dia
após dia
Descansaria as horas em mim,
Por hoje é só
Bruxas e reis sorriram pra mim,
Sei que é assim
Certo é errar, mas quando acordei corri
devagar
Sem perceber cheguei aqui”
(Christiaan Oyens & Zélia Duncan, 1998)
(Christiaan Oyens & Zélia Duncan, 1998)
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