O
DIA DA CONSCIÊNCIA
“A
carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais
barata do mercado é a carne negra
A carne mais
barata do mercado é a carne negra
A carne mais
barata do mercado é a carne negra
A carne mais
barata do mercado é a carne negra
Que vai de
graça pro presídio
E para debaixo
do plástico
Que vai de
graça pro subemprego
E pros
hospitais psiquiátricos
A carne mais
barata do mercado é a carne negra
A carne mais
barata do mercado é a carne negra
A carne mais
barata do mercado é a carne negra
A carne mais
barata do mercado é a carne negra
A carne mais
barata do mercado é a carne negra
Que fez e faz
história
Segurando esse
país no braço
O cabra aqui
não se sente revoltado
Porque o
revólver já está engatilhado
E o vingador é
lento
Mas muito bem
intencionado
E esse país
Vai deixando
todo mundo preto
E o cabelo
esticado
Mas mesmo
assim
Ainda guardo o
direito
De algum
antepassado da cor
Brigar
sutilmente por respeito
Brigar
bravamente por respeito
Brigar por
justiça e por respeito
De algum
antepassado da cor
Brigar,
brigar, brigar
A carne mais
barata do mercado é a carne negra
A carne mais
barata do mercado é a carne negra
A carne mais
barata do mercado é a carne negra
A carne mais
barata do mercado é a carne negra
A carne mais
barata do mercado é a carne negra”
(Marcelo
Yuka, Seu Jorge & Wilson Cappellette na
voz de Elza Soares, 2002)
Há pouco tempo que foi instituído o
Feriado do Dia da Consciência Negra. Infelizmente, não para todas as cidades do
país e sem o reconhecimento unânime de toda a população brasileira (alguns
acham que precisamos de mais “consciência humana” e não de mais conscientização
a respeito da luta e das mazelas da população negra). Zumbi dos Palmares (morto
em 20 de novembro de 1695), se estivesse entre nós, teria um trabalho e tanto
para acalmar a turba xucra e insensível de cidadãos que expõem os seus
pensamentos mais horrendos pela Internet
afora.
O que os detratores do feriado de 20
de novembro ignoram ou não reconhecem é que a população negra trazida da África
à força para o Brasil ajudou a construir as bases deste país debaixo de muito
suor, dor, sangue e chicote. Se levarmos em conta que o racismo nunca deixou de
estar presente nas relações entre nós e se faz cada vez mais gritante em tempos
nos quais vivemos uma retirada constante de direitos civis, é preciso
declaramos apoio incondicional a momentos como este.
Ao acordar mais tarde na manhã de 20
de novembro de 2017, aproveitei para descansar mais um pouco e tomar um café da
manhã mais demorado na frente da televisão: vejo a lendária atriz Ruth de
Souza, no alto dos seus 96 anos de idade, sendo homenageada em um programa de
variedades, assistido por milhões de brasileiros. Senti uma pontinha de orgulho
e esperança ao ver uma atriz de um pioneirismo tão grande como Ruth em cadeia
nacional, depois de mais de quatro décadas de carreira nas artes cênicas.
Entretanto, a minha euforia foi para
as cucuias quando tive a infeliz ideia de acessar as redes sociais e ver
comentários de profissionais de educação criticando o Dia da Consciência Negra.
Um detalhe importante: são colegas de profissão que, como eu, convivem com uma
quantidade expressiva de alunos e pais negros e que possuem muito menos
privilégios do que qualquer um de nós que teve a chance de ouro de estudar em
boas universidades.
Pausa para as trivialidades do
Instagram e do Facebook para ir até a janela ver a origem do barulho
ensurdecedor que invade o meu quarto em um passe de mágica: vejo um trânsito
absurdo na Rodovia Raposo Tavares para um dia normal (imagine para um
feriado...) e dois helicópteros fazendo a ronda da região onde moro. Ao
investigar pelo noticiário, descubro que um carro tinha sido interceptado pela
polícia com um carregamento de drogas. Vi a figura do criminoso pela televisão
sentado no meio-fio perto do ponto de ônibus de frente para a minha janela.
Detalhe importante: o meliante estava sem algemas. Perguntei-me: e se ele fosse
negro? Estaria provavelmente algemado e espancado pelos meganhas ou até morto,
dependendo de sua (falta de) sorte...
Depois da sessão “mundo cão”, fui
almoçar enquanto assistia o noticiário do dia. Ao assistir a notícia de um
rapaz negro que foi perseguido, acusado de roubo e espancado por seguranças de
um terminal de ônibus de São Paulo, senti a comida começando a embrulhar no
estômago. Apesar de não ser negro, tenho a compaixão mínima de me colocar no
lugar da pessoa que foi agredida. Poderia ser um aluno meu. Poderia ser um
amigo meu. Não poderia ter sido eu, pelo fato das pessoas olharem para a cor da
minha pele, para as roupas que eu visto e ver que jamais estaria sob suspeita
de qualquer delito.
A solução para o mal-estar era dormir
um pouco depois do almoço para ver se o desconforto passava. Não passou...
Antes de me preparar para as tarefas do dia, caí na infelicidade de ler um
texto escrito por um projeto mal-acabado de filósofo, intelectual reacionário,
defendendo o jornalista William Waack, flagrado em um vídeo praticando o
racismo da forma mais deplorável e abjeta que já vimos nos últimos tempos na TV.
Enquanto arrumava a casa, decidi ouvir
música. Escolhi dois CDs dos Rolling Stones para me animar a fazer a faxina da
semana. Enquanto ouvia aqueles rocks entremeados
de blues clássicos de Howlin’ Wolf e
Willie Dixon, fui me lembrando de passagens da biografia das pedras rolantes: o
que teria sido de Mick Jagger e Keith Richards se eles não tivessem bebido no
manancial poderoso da música negra norte-americana? Duvido que eles teriam tido
metade da relevância que possuem para o mundo do entretenimento se Mick e Keith
não reverenciassem os negros com tanto respeito...
E teve gente que pensou que Madonna era
negra quando surgiu para o mundo do Pop
em 1982. Levaram um susto ao ver que a voz de “Everybody” não era de uma “afro-americana”
e sim de uma branquela de Michigan recém-radicada em Nova York. Em mais de 35 anos de carreira, Madge é o que
é graças à contribuição da musicalidade dos negros (Rap, Soul, Hip-Hop, etc.) e
porque preconceito nunca esteve em seu dicionário musical. Aprendeu mais uma
das lições mais importantes de seu guru David Bowie, que fez discos
maravilhosos nos quais misturou Soul,
Funk com androginia, narcóticos e Rock ‘n’ Roll. Dois exemplos de artistas
brancos que sempre trataram os negros com enorme respeito.
Se formos falar em matéria de música
brasileira, temos um material gigantesco de músicos brancos que reverenciaram
os negros com todo o respeito. Elis Regina, para citar um exemplo feminino,
encontrou em “Upa, Neguinho!” um de seus maiores sucessos: a canção de Edu Lobo
& Gianfrancesco Guarnieri fala do infante Zumbi dos Palmares e o retrata como
uma alternativa para a liberdade que os negros tanto procuraram em séculos de
exploração.
Apesar dos negros terem encontrado uma
parcela de liberdade e uma boa dose de respeito dentro do universo da música,
eles ainda ganharão menos do que os brancos (fato que contribui para o atraso
da economia brasileira) e estarão no topo das estatísticas de pessoas
assassinadas no Brasil. Enquanto os brancos ainda torcerem o pescoço com medo
ou repulsa daqueles que escravizaram no passado, teremos milhares de motivos
para que todo dia 20 de novembro seja lembrado dos horrores que nós e nossos
antepassados já cometeram por pura maldade, burrice e ignorância...
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